segunda-feira, fevereiro 26, 2007
Dormir
Se tivesse que arrumar a palavra sono, o marcador seria a palavra infância. E à cabeça vem-me a memória do meu avô Figueira, um dos homens mais saudáveis que conheci. Até nos provérbios com que conduzia a sua vida e a dos que o circundavam. Crescer, ganhar ramagens, ser árvore foi um longo percurso de desafectação com momentos como o sono. Aos bons conselhos e provérbios do meu avô sucedeu-se o temos a morte toda para dormir. As directas passaram a ser as epifânias de uma vida que se queria aventurosa. Ainda hoje tenho como record pessoal de vigília os meus dezanove anos. Tirava o décimo primeiro ano, horário de manhã e tarde, às sete da tarde estava na sala vermelha do Casarão Cor de Rosa a ouvir o João Mota conduzir-nos pelos mistérios da incorporação dos personagens, das histórias, dos ambientes, estávamos nisto até às onze, e depois oferecíamos-nos para o apoio ao café-teatro e restaurante,onde se estreava, por aquela altura, o Deixós Poisar. Eram horas e horas de conversas, de descobertas, o corpo era uma flor a abrir-se devagar ao toque, à sensualidade, ao arisco e tudo isso acabava invariavelmente às cinco e tal da madrugada nas escadas do metro de Palhavã, onde aqueles que íam para os Olivais se aninhavam do frio, avançando nas artes do aconchego. Depois era entrar de manhã em casa, ver os olhares reprovadores dos meus pais, tomar um duche, e ir, meio a dormir meio acordado, para a Escola. Foram seis meses nisto. É claro que uns tempos mais tarde apanhei um esgotamento cujas causas mais próximas sempre atribui a coisas como a insegurança, o choque cultural, a minha platónica pela Rosalinda ou a dureza do meu primeiro emprego. E daí para cá tem sido sempre essa relação desconfiada e tensa com o dormir. Dantes levantava-me de noite para escrever e fumar, para fumar e escrever ou apenas só para fumar. Ou ía dançar, passear. A noite parecia-me uma musa muito mais recomendável do que a claridade brusca e intrusiva do dia. As insónias não eram tanto um mal, mais uma condição. Hoje já não consigo fazer uma directa sem inexistir no dia seguinte, mas passo muitas vezes semanas com cinco horas de sono diárias. A menos que esteja acompanhado - e mesmo assim com alguma disciplina e domínio ao longo dos tempos, era recorrente as mulheres da minha vida queixarem-se de que adormeciam sós - ir para a cama parece-me sempre um trabalho, uma fadiga. Abri uma excepção este fim de semana. Dormi que nem um nababo. Lembro-me também de ter sonhado profundamente. É que se o sono repara o corpo, o sonho restaura a alma. Só estou com um pequeno problemazinho: chegado do lado de lá, da terra dos sonhos, esta segunda-feira parece-me realidade pouca, tão pouca.
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