Ela fala muito. Mais do que ele. Fala sobre o dia. E ele, divertido, contempla as palavras sem ligar ao sentido. Apenas aos ritmos e inflexões. Ela pergunta-lhe como foi o dia dele.
Muitas vezes está no dia dela, a fazer como faz sempre tomando o galão no mesmo café, fingindo não ver a rapariga de óculos na paragem de autocarro que todos os dias quase a reconhece, ou caminhando o que lhe falta para o trabalho, e pensa nele. Tem a certeza que ao contrário dela, os rituais do dia dele são mais delicados.
E esta noite pergunta-lhe "Como são os teus dias?". E ele, de costas, lavando a loiça, diz que se levanta, que vai cozinha por água a ferver para um chá, volta para o quarto, abre a janela da água furtada assustando os dois pombos habituées daquele beiral, enrola um cigarro que fuma muito devagar. Se estiver a chover não fuma nessa janela. Abre a janela da marquise que se espraia sobre as traseiras cinzentas dos prédios e fica na esperança ténue de vislumbrar a vizinha que um dia lhe havia mostrado os seios, mas que já se mudou (ele pelo menos nunca mais a viu à janela).
Então, vai à casa de banho, encontra o espelho manchado. Pergunta-lhe se já está na altura de cortar a barba. Mas não se consegue convencer.
A água fervendo, chama-o.
Coloca uma saqueta na caneca que ele diz que sabe sempre a leite por ter sido a que usava desde criança, e o chá pode ser vermelho ou preto.
E depois pensa. "Onde vou?". E vai.
É possível encontrá-lo em cafés livrarias praças, em diferentes locais da cidade.
Ela evita esses sítios da cidade. Sente que tem que reduzir aqueles encontros ao mínimo.
E é então que ela lhe diz "Acho que um dia me vai custar ver-te com outra pessoa. Quando passares por mim com alguém novo, acena-me de longe.".
"Eu não tenho jeito para essas coisas.".
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