terça-feira, maio 29, 2007

Manhã

Voltei a descer o Caracol da Graça. A cruzar a sua Rua do Terreirinho. Honrei os meus mortos com a minha dor, emprestei-lhes até a dor da antevisão do que seria a minha própria morte. Entristeci-me também. Ou melhor, activei-me na tristeza de que sou feito. Não o fazia de propósito, por um desejo qualquer de necrofilia. Fi-lo porque as amava, e amava-as porque faziam parte do meu pequeno mundo, do meu universo em intenção. E agora é de manhã e desço o Caracol da Graça. Estou na Rua de S. Tomé e cruzo-me com uma pessoa que me é familiar. É uma mulher. Ontem vi-a na esquina da Av. da Liberdade, vaporosa, à procura dos gatos pardos que enlouquecem durante a noite. Tem um ar másculo, na voz, no rosto. O peito, o passo, até o gracejar, é de mulher. Diz bom dia aos vizinhos, entre passadores de droga, trolhas e serventes de pedreiro, lojistas, duas ou três pessoas que estão ao balcão, e eu viro-me, vejo-a a subir a rua, saracoteando-se, por momentos acode-me a imagem de Gisberta e refreio o meu entusiasmo pela forma como o bairro acolhe a biodiversidade do género humano. As catástrofes acontecem de repente e dão-nos os outros mundos que já lá estão, refreados, contidos, em potência, no nosso mundo-maravilha. Já estou no Rossio, ouço drão/grão, Caetano rebenta-me os timpanos.

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