segunda-feira, setembro 10, 2007

Licenças de habitação

Quando chego à esplanada estou a pensar demorar muito pouco. Há uma grande agitação de jovens, adolescentes. Os grupos habituais não estão lá. Os meus amigos muito menos, toda a gente decidiu namorar neste fim de verão, estão no seu direito, penso que não vou demorar muito. Engano meu. A pouco e pouco afundo-me naquilo que é um dos maiores prazeres: vampirizar o real que se solta da conversa dos vizinhos. Às minhas dez horas tenho um grupo de três jovens, dois rapazes e uma rapariga. Conversas triviais. Passo. Às minhas seis horas um casal que talvez tivesse algum interesse, mas que me obrigaria a virar-me de forma pouco discreta. Afino baterias para um par à minha frente. Ele deve ter dezanove, ela também. Fumam os dois. Ela português suave vermelho, ele sg filtro. Têm uma cerveja e dois copos em cima da mesa. Há uma linguagem do corpo que fala mais alto do que os titubeares com que dizem coisas que não se parecem com eles. Falam de relacionamentos, de viver-se com alguém que não se ama - eu disse ama?! eles dizem, alguém que não se goste - e de como isso é desinteressante. O rapaz começa a falar de uma sua antiga namorada. De que era ciumenta. A rapariga está interessada. O que é que ela dizia? Sinto que ela se mede. Estão próximos, mas acho que estão tão absorvidos em fazerem bem o seu papel que nem reparam o quanto estão próximos. Ela tem a sua perna a tocar-lhe na perna, na zona lateral. Depois algumas vezes balança as suas havaianas castanhas, a condizer com a sala e a camisola, e toca-lhe nos ténis por engano. Ele recompôe-se e recomeçam a falar. Eu percebo que a conversa não é importante para nenhum deles. Ela está a fazer-lhe um teste. Sorri-lhe empaticamente, gesto a que ele não corresponde, enrola o cabelo, faz tranças enquanto o segue com o olhar. Ele sabe que está a ser testado. Talvez esteja a maldizer-se por ter passado a tarde toda a galhofar com os seus amigos sobre este encontro em vez de ter pensado um pouco mais naquilo que ía acontecer. A sua sorte é que ela está disponível, dá-lhe latitude suficiente para ele se poder espalhar devagarinho. E eu começo a pensar em quanto tempo será necessário para aqueles dois jovens aprenderem a intimidade, o estarem, o envolverem-se. Tudo neles são ainda gestos falsos. Eles não estão a falar verdadeiramente um com o outro. Estão a começar uma longa e demorada conversa consigo mesmos. Que ficará onde, não sei, ninguém sabe, a vida é rica por isso mesmo, ninguém sabe. Mas tenho a sensação de que estão ali quatro entidades distintas. Os dois que falam, os dois que são agitados por um falar interior, monologado. Eu sei que sou suspeito mas é preciso algum tempo de maturação para que o pano da mentira caia. Os anos que isso é. A certa altura mudam de conversa. Começam a falar de casas. É ela que introduz o tema. Licenças de habitação, para ser mais exacto. Enquanto se recosta para trás acrescentando alguma langudez longitidunal ao desenho do seu corpo, aumenta o tamanho do seu sorrisso empático pressionando levemente as bochechas, e começa a falar de licenças de habitação.
Ele faz-se de entendido enquanto por baixo da mesa as suas mãos o traiem, no seu nervosismo.

1 comentário:

Cristina Gomes da Silva disse...

"...vampirizar o real que se solta da conversa dos vizinhos" gostei da expressão, tb gosto de o fazer.