A minha mãe telefonou-me a pedir-me um livro pelo Natal. Achei graça a esta regressão. Cansou-se do para mim está bem qualquer coisinha, dos lenços de senhora, das malas ou sacos, dos chocolates, escreveu ela o seu pedido de Natal. Claro que já o comprei, com o prazer de ver a minha mãe, por momentos, tornar-se menina-gaiata. Quase de improviso, nem por acaso nem por premeditação, encontro-me com uma amiga, que me oferece Jerusalém, do Gonçalo M. Tavares. Tinha ficado deslumbrada com o livro e queria oferecê-lo, espalhá-lo por aí. Desconfio que não serei o último desta corrente. Subo ao Vertigo, começo a desfolhá-lo. Por alguma estranha cumplicidade com o prazer que se destapa da leitura a empregada atrasa-se muito a trazer-me o café. Eu tinha tido sempre uma grande resistência em ler o Gonçalo M. Tavares. Como tenho resistência em ler todas as pessoas que conheço ou conheci. A relação com a obra literária assenta num protocolo invisível que me sustém, enquanto leitor, num fio bambo, de trapézio, onde me aventuro por territórios sem fim e isso, é uma proxémica outra, a dos lugares imaginários. E o contrário também. Os escritores que admiramos, os nossos mestres, é de bom senso sabê-los deixar nas prateleiras das estantes. Na vida atrapalham-nos a percepção da sua obra. Sou desde há muito um apaixonado leitor do autor de A Memória de Elefante. Há uns dois anos estive muito próximo dele, numa recepção de uma embaixada, creio que partilhámos o prato dos croquetes, talvez nos tenhamos mesmo afeiçoado por um mesmo prato de canapés e entradas. Eu comia desmesuradamente os croquetes e os canapés na ânsia de despertar a atenção daquele que era para mim o ponto mais alto da nossa literatura. Até que de repente, com tanto atafulhanço, tive de parar, de respirar e, nessa pausa, olhei para ele e vi, por detrás do escritor, o homem. As rugas, o olhar escondido, dorido, o quase sacrifício com que se arrastava, as conversas monossilábicas. Será certamente um homem magnífico, um ser humano excepcional, sem dúvida. Mas não é o mesmo que eu li sofrêgo, com a mesma voracidade com que me atirei ao prato dos croquetes e canapés, e nessa diferença reside tudo o que é essencial numa leitura. Ainda nem consegui acabar o Tratado das Paixões da Alma. Da mesma forma tenho evitado ler os livros do Gonçalo M. Tavares, que conheci há uns anos num encontro de autores dramáticos em Évora e com o qual me vou cruzando por aí. Até que esta boa amiga me depositou nas mãos Jerusalém. E comecei a ler o primeiro capítulo, de onde se soltam as personagens de Ernest e Mylia. E através desta começo a mergulhar numa história que me seduz a sério, com uma adesão quase juvenil. Sou destes personagens que procuram uma igreja a meio da noite, sendo que a noite é a própria vida. E por uma vez, o breve contacto que tive com o Gonçalo aproxima-me da sua obra. Lembro-me dele a não nos acompanhar na noite depois dos espectáculos porque tinha que se deitar cedo para acordar cedo, escrevia sempre pelo desamotinar da manhã. E enquanto nós vínhamos sozinhos, ele trouxe toda a família, os filhos, os pais, a mulher e lembro-me como era contagiante aquela harmonia que dele se soltava. Digo isto porque tenho este preconceito para com as pessoas felizes: penso sempre que nunca serão capaz de me comover com o drama humano e é isso, essa comoção, que me vai levando pela mão da literatura, do teatro, da música, da arte. Vou voltar a procurar a entrevista que a Alexandra Lucas Coelho lhe fez há pouco. Jerusalém de Gonçalo M. Tavares está a despertar-me a vontade de admirar, de me congratular.
5 comentários:
parece impossível como eu abominei taaanto esse livro. e apesar disso o li, sempre à espera de não sei quê que o nome e a fama dele me prometiam. mas não encontrei.
Que coincidência, hoje ofereci este livro a um amigo que adoro.
O livro é excepcional. e o meu amigo não lhe fica atrás.
obrigado, mesmo sendo mera coincidência, mr.
:)
Mónica, espero pelo Natal para ver se acabo o livro. boas festas.
:)
estão a rir-se porquê? qual é a piada, parvinhos?
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