sexta-feira, março 21, 2008

A minha mão esquerda

Tenho as duas mãos com linhas muito vincadas. A linha da vida, do amor, do dinheiro. O que sempre entusiasmou muito as cartomantes, videntes e ciganas que a troco de uma moedinha me predizeram o futuro. Só há uma linha que não sabem interpretar. Bem no centro da minha mão esquerda. Há muitos anos, trabalhava eu no Bairro da Quinta da Calçada como animador de um ATL da Santa Casa, era responsável pela área de dramatização e animação da biblioteca, havia um grupo de miúdos terríveis, que davam cabo de qualquer candura. Futuros delinquentes, era assim que a escola os via, era assim que eles se habituavam a ver-se. Tive muitos momentos de vitórias com eles. Aprendi lições que me ficaram para sempre. Criei ali algumas estratégias pessoais que depois desenvolvi, como a instalação dramática e, principalmente, a construção do personagem que ainda hoje desenvolvo. Mas naquele dia passei-me. Os miúdos estavam lá fora, no recreio e não vinham para dentro. A minha colega, a decana, a quem tinham um imenso respeito, já tinha desistido. Eu lá fui. Os miúdos continuavam a desafiar-me. Havia principalmente um, mais malcriado e completamente incontrolável que por vezes se virava ao pai. A certa altura, completamente fora de mim chamo pelo nome dele, gritando. Era uma portada dupla. Uma estava fechada, a outra aberta. Eu estava diante da porta aberta. E ao gritar o nome dele, bati com a mão na portada que estava fechada, com toda a força, com a força que me apetecia ter empregue naquele pequeno diabo. Havia um grande prego na madeira. Eu enterrei a palma da minha mão profundamente nele, tive mesmo que fazer força para me soltar da porta de tal forma a minha mão ficara pregada nela. Levei pontos, fui suturado, e sobrevive-me uma pequena cicatriz. Não é grande. Não chega a ser uma linha a sério. É um carreiro. Dou graças a um deus em que não acredito por ter sido a minha mão e não a cara daquele pequeno estafermo que eu maltratei. Chamo-lhe a minha linha da pedagogia. Penso nela quando ouço estas histórias como o do vídeo que anda agora a correr o país. E que é importante que o vejamos muitas vezes. E que reflictamos muito sobre a grande solidão em que se encontra o professor na sala de aula. Lá os clichés, a nossa demagogia, de pouco servem. Ali é o território da relação.

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