sábado, junho 21, 2008
Debaixo da copa das árvores
Sentei-me por perto. Há alturas em que a vida dos outros é como que um filme. Ouvimos uma palavra e solta-se dentro de nós um turbilhão de imagens. Percebi que falavam de trabalho. Eram duas mulheres e um homem. Ele estava enfiado na cadeira, sentia-se que era para ele que elas falavam. Mas não o ouvi dizer uma palavra durante toda a noite. Umas interjeições, uns assentimentos de cabeça. Elas não. Falavam de uma outra pessoa.
- Eu não tenho nada contra a Adelaide. - dizia a mais forte, uma rapariga de corpo bojudo, grandes peitos, rabo saliente, com o cabelo apanhado com um gancho de adolescente.
- É uma vaca. - respondeu a outra, magrelas, olhar perscrutante.
O rapaz encolhia-se na cadeira.
- Ela não percebe nada daquilo. No outro dia pediu-me para lhe abrir o ficheiro de excel e para a ensinar a somar tabelas de folhas diferentes, não sabia, é uma burra!
- E o tótó do Armindo nem percebe, está obcecado pelas mamas dela.
Aí a rapariga das grandes mamas olhou para o lado, para trás, deu com a minha cara. Percebi que o assunto não lhe era confortável. Estive quase para dizer, não se importe, eu não falo disso. Não lhe disse mas estive quase para não puxar o assunto ao texto. E só falei das mamas porque é importante para o que vem a seguir, vocês vão ver. Mas primeiro o rapaz. também ficou incomodado. A magrelas, percebi que se chamava Ricarda, atacou-o logo:
- Não precisas de dizer nada. Eu sei bem que passas a vida a olhar-lhe para o peito. Vêm umas tetas maiores ficam logo com os olhos em bico.
Agora foram todos que ficaram em silêncio, um silêncio desconfortável, principalmente a rapariga que falara e que tinha um peito inexistente. Olhou para mim no entretanto. Eu estava tão perto que ouvia perfeitamente a conversa. Nestes momentos penso sempre, estou perto de mais. É um problema meu. Quando comecei a querer ser escritor ouvia perfeitamente, fechava os olhos, concentrava-me, e era capaz de escutar uma conversa no outro lado da esplanada. Desenvolvi essa capacidade. Todos nós temos pequenas habilidades que vamos desenvolvendo, que ao princípio nos custam imenso mas que ao fim de algum tempo percebemos que as fazemos como ninguém. Eu consigo fechar o meu olho esquerdo de uma forma completamente extraordinária: domino tão bem os meus músculos que não tenho que fazer nenhuma pressão em mais nenhum músculo pelo que o olho parece que fica inerte. Dá até mau aspecto, parece que tenho um olho morto. Consegui essa habilidade quando deu a telenovela Casarão, há muitos anos. Eu naquela altura não queria ser escritor, queria ser actor. Então treinava-me muito diante do espelho. Fazia caretas, treinava os músculos. E como era estudante de teatro na Comuna e lá se pregavam as virtudes do actor segundo a cartilha de Grotovwski, que postulava o total controle do corpo por parte do actor, eu passava horas e horas diante do espelho a treinar o meu olhar à Paulo Gracindo. Não considero isso nenhum feito extaordinário. É até muito vulgar. Talvez não seja habitual a fixação de um jovem no velho actor Paulo Gracindo, mas isso é outra história, porque quanto ao resto tenho encontrado pessoas por essa vida fora que fazem habilidades muito mais estranhas. São coisas que começaram a fazer e que agora, passado muitos anos, fazem com grande perícia. Cuspir entre os dentes, assobiar ou imitar sons de animais, mexer o lóbulo da orelha esquerda, dar uma volta com a ponta do nariz. E por aí fora. Eu ouvia realmente o que se passava do outro lado da esplanada. Principalmente as vozes. Vozes humanas. Especializei-me nisso, nas vozes humanas. Embora tenha perdido a prática e hoje em dia já preciso de me aproximar muito ficando num raio proxémico muito curto. O que é complicado. Nunca fui muito adepto das correntes de escrita que postulam a integração do narrador na história. Para mim uma boa história é quando as pessoas estão lá, entregues á sua sorte, sem saberem que são vistas, que estão a ser sugadas para o interior de uma ficção. Não por algum tipo de respeito pela privacidade do outro. O dispositivo de fabricação de uma história que utilizo é dos mais recentes e transforma de tal forma a matéria prima na personagem que nem a sua mãe a reconheceria. Digo isto porque percebo que muitas vezes as pessoas quando sabem que, de alguma forma, estão a ser registadas, assumem um comportamento e uma pose que depois torna difícil - mesmo num maquinismo sofisticado como aquele que agora utilizo - centrifugar aquilo de modo a aproveitar ao máximo o sumo narrativo. Isto para não falar das situações, como esteve quase a acontecer agora, em que me tentam envolver. A rapariga das maminhas pequenas, a Ricarda - gostava mais que se chamasse Ricardina, nunca tive uma personagem que se chamasse Ricardina, e por isso fiquei com pena de ter estado lá tão perto, talvez por isso a minha persistência em chamar-lhe rapariga das maminhas pequeninas, é uma pequena vingança - a Ricarda olhou para mim, tentou-me atirar para uma das extremidades daquela conversa, recusei, baixei os olhos, olhei a copa das árvores, puxei do telemóvel, comecei a tirar fotos à copa das árvores, utilizei a técnica panorâmica, há qualquer coisa de misterioso na copa das árvores, nunca tinha reparado, é como se se escutassem vozes num lugar ermo, de ninguém, deixei-me estar assim, completamente absorvido por elas, não posso assegurar mas creio que foi para me trazer à realidade que Ricarda disse, num tom mais alto:
- O que eu queria dizer é que estou farta que os homens me olhem para as mamas, para o rabo, que já nem se fiquem pelo cochichar, agora até já têm conversas ordinárias à minha frente, devem pensar que a Ricarda gosta, a vaca...
O rapaz soergueu-se da cadeira. Pela primeira vez percebi que existia. Tinha uns óculos sumidos, de aro fino, barba rala, uma camisola com carapuço.
-Se estás à espera que eu como gajo os defenda podes continuar a esperar sentada.
A Antónia, a outra rapariga, a do peito saliente, segurou-lhe no braço:
- Quando comecei a trabalhar pensava que isto era uma coisa que acontecia só com os empregados mais velhos, os tipicos gajos do encosto.
- E é em todos os lados. Mesmo nos sitios melhores, universidades, televisão, jornais, onde há pessoas diferentes. - disse a Ricarda.
- E uma gaja que se queixe de assédio sexual ainda arranja chatice. Sabes a Alice, lá de cima, a do leasing? O António fazia aquelas parvoíces todas de atrasado mental, atirar coisas para o chão para lhe ver o rabo, mexer nos tomates à frente dela, salivar, meter revistas porno nas gavetas onde ela tinha de ir buscar papéis e quando contou ao marido o atrasado mental que ela lá tinha em casa ainda lhe bateu.
Inesperadamente, no melhor da conversa, um telefone toca. Ricarda fala alto, Antónia e o rapaz calam-se. O diálogo telefónico demora longos minutos de tal forma que quando Ricarda desliga o telemóvel já ninguém se lembrava da conversa que começara a inflamar. Estive quase para lhes servir de ponto, mas achei complicado. É uma linha de abordagem ficcioonal que não me agrada muito. Histórias, histórias, narradores à parte. Preferi por isso levantar-me com maus modos, atirar uma moeda para cima da mesa e sair a praguejar contra os telemóveis, essa praga para quem anda a catar histórias debaixo da copa das árvores.
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2 comentários:
Mini-crónica urbana? Gostei
ainda bem, vêm aí mais parece-me...pequenos contos...debaixo das árvores...eheheh...para não perder o vício de imaginar histórias...e me livrar um pouco desta coisa da escrita auto-reflexiva...
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