terça-feira, junho 10, 2008

O miradouro é um lugar do pensamento

Estou aqui neste dia ventoso e de repente apeteceu-me entrar neste estado de sítio, o futebol. Apeteceu-me pensá-lo. É decerto um apetecimento estimulante e até nobre: devemos ser capaz de pensar quando tudo arde. É claro que eu estou de férias, estou no bem bom do meu quimtal, estou dentro das minhas alfaces, sei por exemplo que a flor das cebolas é um sinal de que as mesmas estarão para breve na sua saída da terra, um abelhão sobrevoa o talhão e há-de fugir por entre as malhas da rede da minha vizinha, a que tem um girassol virado contra o sol, já deu conversa aqui hoje, o meu amor sustem que o girassol perdeu as graças do sol, eu, mais pragmático, acho que ele está plantado dentro de um vaso e que a minha vizinha, ela é artista de teatro, disseram-me, chega sempre a desoras, afiançaram-me, o vira para a sua marquise, há pessoas que fazem isso aos girassóis, e agora tenho um pardalito em cima da cadeira de lona que coloquei ao pé do meu miradouro do rio, o meu miradouro do rio é um sítio de onde eu veria directamente o rio se não tivesse um muro demasiado alto para isso, em vez disso vejo sardinheiras, as minhas sardinheiras, chamo-as minhas mas nunca as plantei, nunca fiz nada para que desabrochassem, até posso confessar, muitas e muitas vezes pensei que aquele pequeno canteiro iria ser um pasto de urtigas, não foi, são as minhas sardinheiras, penso nelas enquanto minhas quando me sento na minha cadeira de lona para ver o rio e não o vejo, olho então as sardinheiras e imagino o rio, penso no rio,o rio que corre na minha cabeça e do lado de lá do muro, para que é que é preciso estarmos sempre a ver as coisas?, essa obsessão pela posse das coisas não é o que as torna um pouco irredutíveis ao pensamento?, ora era aí que eu estava quando comecei a falar do meu quintal, a dizer que me apetecia pensar sobre este estado de sitio que me cerca, só que o que me parece, e parece-me, nem chamo isto um pensamento, também é verdade que cada vez penso menos, as coisas aparecem-me, parecem-se, sou cada vez menos capaz de as pensar, a minha mãe diz que é por causa do tempo em que passo nos blogues, a minha mãe nada, a minha mãe sabe lá o que eu faço ou desfaço, trouxe-a ao texto por nada, por que me apeteceu, apetece-me divagar, fazer de conta que vos atraio com uma ideia e depois não ter ideia nenhuma, tenho parecenças, as coisas parecem-se umas com as outras e eu depois olho para umas e para as suas próximas e digo, eu penso que, é só isso que eu faço, quer dizer, a maior parte do tempo faço outras coisas, por exemplo, nas férias, estou de férias, a quantidade de coisas que faço nas férias, sexo, claro, é um bom começopara uma conversa sobre férias, as férias são sempre o regresso do belo sexo, lá estou eu outra vez a disparatar, as férias nada têm a ver com o sexo, o sexo é uma fusão nuclear de massas, de líquidos, de substâncias (al)quimícas, nada tem a ver com as férias, tem a ver com a vida, a vida de todos os dias, ele é uma vibração interior e no interior de um novo corpo saido das mãos de Arcimboldo, um novo corpo, figura disforme de duas cabeças, quatro pernas, duas línguas e duas fomes, pode parecer estranho, poderia até desenvolver mais, fico por aqui,
há qualquer coisa no futebol de irredutível ao pensamento e não o pensar, recusar pensá-lo é já começar esse trabalho do pensamento. Pode parecer estranho mas o esforço que faço para o pensar é o mesmo que faço para não ligar a televisão, para não ler as milhares de palavras sobre o pontapé na bola, hão-de reparar, não li os jornais, comprei o DN por causa do Homem Morto de Jim Jarmush - lá dentro percebi que escreviam sobre o jogo três pessoas, o director, João Marcelino, descrevia o jogo pátrio, outro repórter, dava as notas da Turquia e ainda outro que fazia sei lá o quê - aposto o meu salário como estes três juntos disseram o que disseram toda a gente em todas as latitudes, em todos os lugares. Desta edição de domingo safou-se o Homem Morto com um magnífico Johnny Deep, mais a entrevista que a Sarah Adamapoulos fez ao Nuno Nabais e a José Pinho, da Fábrica do Braço de Prata, vai dia 14 fazer um ano de Fábrica, de poesia, de música, de um lugar que, como diz a Sarah, parece uma aparição, temos lugares assim, aparecentes e desaparecentes, nascem do nada e esbroam-se em coisa nenhuma.
Começo por pensar no futebol assim, não o vendo. Como penso no rio que está por detrás do muro branco. Penso no futebol, no negócio, enquanto me entretenho com as imagens das tardes infindas na rua, das manhãs a ir ver o jogo de futebol no campo do Oriental, nos Olivais, desse prazer imenso em correr atrás de uma bola. No só mais quinze minutos mãe, para ver se acabávamos o jogo do muda aos cinco, até aos dez. Na primeira prenda, uma bola de cautchu, nova, todos os anos, a minha prenda mais ansiada. Penso no futebol e na ideia de que é preciso alguma lucidez para assumir que esta relação quase matricial que tenho com o futebol é outra coisa que o negócio. É preciso deixar agora o futebol entregue àqueles que não o podem pensar, àqueles que o tornam coisa impensável.
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