terça-feira, junho 03, 2008

O primeiro livro

A mãe veio entregar-lhe a prenda, o primeiro livro para ele ler, a sério, com palavras, mais palavras. Nunca mais o largou. O mundo passou a ser outro. Nos elevadores, no hipermercado, tudo é legendado, tudo é um manancial para este jogo ávido da leitura. É precioso o que se passa quando lemos: numa folha estão palavras. No nosso depósito de imagens (já não me atrevo a dizer, dentro de nós, sei lá eu se é fora de nós?) há uma série delas que vão ser mobilizadas. Não é o texto que é decifrado. Somos nós, enquanto arquivo de imagens, de sons, de movimentos, que nos deciframos. Ainda ontem estava a ler A rapariga que inventou um sonho de Haruki Murakami. Tropecei na palavra oleandro. Não tinha uma imagem para oleandro. Criei na minha mente uma planta, de onde provem um óleo, uma planta com folhas largas e compassadas, que rima com escafandro que é para mim uma palavra preguiçosa, de tardes de sol. É o meu oleandro que só existe dentro de mim. Daqui a pouco vou ao google ajustar o meu oleandro pelo oleandro do mundo mas até lá o meu oleandro conta-me, conta-me no meu desejo de tardes preguiçosas tal como a tarde de mirtilhos decifrava Elisabeth ontem, no filme das oito. Percebo também porque é que o mundo me cansa tanto ultimamente. É porque as imagens às quais me conecto, na rua, na televisão, na publicidade, no próprio quotidiano têm (quase) tudo. E no terem tudo falta-lhes qualquer coisa: a disponibilidade para serem sonhadas, desejadas, imaginadas. para se ligarem às minhas imagens interiores. Desde que descobri o mal, descobri também a cura: por vezes, diante do totalitarismo das imagens sem sonho nem fantasia, fecho os olhos e, como se a realidade fosse um livro, crio os meus próprios oleandros.