terça-feira, setembro 16, 2008

Carta ao pai

"À mesa só se admitiam actividades relacionadas com a comida - mas tu cortavas e limpavas as unhas, afiavas lápis, limpavas os ouvidos com palitos. Por favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas coisas insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o homem que era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me obrigavas a mim a seguir à risca. Com isso o mundo apresentava-se-me dividido em três partes: uma primeira onde eu, o escravo, vivia submetido a leis que tinham sido inventadas para mim e que eu, sem saber porquê, nunca poderia cumprir à risca; depois um segundo mundo, infinitivamente distante do meu o mundo em que tu vivias a comandar, a dar ordens e a irritares-te porque não te obedeciam; e finalmente um terceiro mundo, o das outras pessoas, que viviam felizes e livres de ordens e obediência"
Carta ao Pai, Franz Kafka
À primeira leitura pareceu-me um texto autofágico em que o autor se deixava engolir pela sua própria palavra. O livro é quase nada isso. O pai Kafka e a criança Franz quase desaparecem da leitura. Somos nós, os nossos filhos, como o foram os nossos pais, que, de uma forma ou de outra, estamos ali. São as nossas dedadas sujas de compota sobre o mármore da pedra da cozinha que saão imortalizadas por este instante, sei lá de quê?!, brutal. Estaremos preparados para reconhecer que as nossas famílias recriam, em ambiente de estufa, todas as barbariedades de que o ser humano consegue acudir-se para justificar esta jornada insanável que é a vida? Estaremos preparados, nós pais, para nos darmos conta o de quanto somos importantes para os nossos filhos? O de quanto somos modelares? Eu, que nem para mim mesmo sou exemplo de coisa nenhuma, às vezes custa-me. Atordoa-me a responsabilidade. E olho para trás pela milionésima vez: a perda real, física, do meu pai transformou-se numa outra perda. Deixei de o conseguir pensar como meu tirano. Como fazia quando tinha treze anos e, com a mesma dureza com que o meu filho me chamou cruel há dias, o chamei de fascista. Já não sei porquê mas não me custa reconhecer que o motivo era tão pueril como aquele que motivou aquele cruel do meu pequenitates. Ou quando a minha mãe quis consagrar a nossa casa ao Sagrado Coração de Maria e chamou o seu velho amigo, o bispo D. José Ribeiro, e numa cerimónia em que toda a família estava ajoelhada a minha mãe me foi buscar ao quarto e me obrigou a ir também ajoelhar-me, lembro-me que chorava copiosamente, sem compreender como é que um bispo de Deus consentia em tamanha violação de um espírito adolescente, como é que a própria Virgem Maria não saia do quadro e, tal como Cristo com os vendilhões do templo, não transformava as minhas lágrimas em pequenos raios de sol. Hoje aos quarenta e seis anos já me parecem histórias que eu ainda sei que são minhas, mas apenas isso, sei, não sinto. Esta Carta ao Pai de Kafka reaviva-me tudo isso, principalmente essa sensação de rebeldia, de querer ser uma criança insubmissa, contra a respiração oficial das coisas, o meu lema de juventude. E de repente entra aqui pela sala um cheiro a liberdade, a identidade, por breves momentos, que morrerão logo a seguir quando acabar este texto, sei de onde sou, com quem sou, contra quem sou.

2 comentários:

Leonor disse...

Essa rebeldia face à figura paterna, sadia, diga-se, dilui-se com o tempo, e as oposições que ficam, tornam-se serenas perante a imensa gratidão, admiração e reconhecimento que entretanto a maturidade torna conscientes.
São coisas que fazem parte do ciclo da vida, incluindo o assumir de novas rebeldias e o sedimentar de contra quem somos.

Doramar disse...

Àparte de qualquer insanidade (que hoje até me faz rir) e de qualquer rebeldia, quando olho para trás reconheço acima de tudo a grandiosidade do amor parental. Os pais também crescem... Filhos e pais amadurecem juntos no caminho.