sexta-feira, outubro 03, 2008

Casamento entre pessoas do mesmo sexo: quem (como se) proteje o direito à identidade cultural das maiorias?

Miguel Vale e Almeida é muito claro sobre o que sente enquanto homossexual: que é tratado como M-E-R-D-A. O facto de ter andado muito ocupado profissionalmente arredou-me da escrita do respirar. Escrevi posts mentais. Sobre a crise financeira, sobre os gatos do meu quintal, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as discussões intermináveis e cada vez mais absurdas que leio sobre uma caldeirada ideológica que se torna num matraquear das mesmas posições até à exaustão. Eu acredito que os defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo estejam a desesperar com a hipocrisia política do PS e já não tenham pachorra para argumentar sobre este assunto. Nem eu, que também começo a ter uma irritação crescente com alguma hipocrisia que encontro nalguns argumentos dos defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo me livro da sacrossanta pele de galinha pela cobardia politica dos par(a)lamentares socialistas.
Irrita-me por exemplo ver o argumento estafado de que a democracia se qualifica pela sua capacidade de defender as minorias. Esse era o argumento que nós usávamos há vinte anos quando não sabíamos ainda que 3% da população mundial detinha 97% do rendimento e que 97%da população mundial ficava com 3%. Mesmo num meio tão marialva como é a classe jornalística portuguesa - e pela proximidade que esta tem com movimentos urbanos com incidência na cultura, na arte, bem como pela disseminação de novos meios de comunicação onde os mais jovens têm mais acesso - a posição de defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo só tem encontrado a repercurssão mediática que tem tido porque os movimentos sociais e politicos que a patrocionaram, mesmo tendo uma expressão minoritária, têm um grande poder e expressão na sociedade da comunicação. A democracia moderna qualifica-se sim por desenvolver sistemas solidários de defesa dos menos poderosos, que são maioritários (e não por defender os direitos das minorias, que são quem detém o poder cientifico, social, politico e económico). Devemos defender o direito dos casais do mesmo sexo não por eles serem minoritários mas porque eles, o respeito pelo seu modo de vida - custe o que custar aos nossos estereótipos e modelos culturais - fazem parte de uma maioria de razão que a sociedade contemporânea perfilhou como medida do seu melhor desenvolvimento: o dinamismo da integração, da não discriminação e da diversidade cultural.
Outro argumento muito usado pelos defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo é a de que seria apenas uma alteração mínima que não custava nada e que aliviava o sofrimento de muitos casais do mesmo sexo, argumentando ainda Miguel Vale Almeida que tem de ser o casamento e nada mais e que defender um outro tipo de enquadramento jurídico é a mesma coisa que defender o apartheid.
Este argumento esconde uma enorme hipocrisia social: o casamento é uma construção cultural, histórica e jurídica que, na nossa sociedade, regula a união entre duas pessoas de sexo oposto. Não é apenas uma construção jurídica. Se o fosse não fazia sentido os movimentos lgbt recusarem que haja apenas um novo ordenamento jurídico que lhes devolva a cidadania.
E se assim o fizessem seria até expectável que eles quisessem destruir o casamento como marca da discriminação histórica e cultural a que ao longo dos tempos a civilização ocidental votou os homossexuais. Mas não, eles querem casar-se. Eles querem destruir a instituição casamento que, graças à proximidade perigosa dos estados ocidentais com a religião, tanto lhes sonegou os direitos civis e transformá-lo numa outra coisa, construindo um novo casamento que se adapte ao pensamento contemporâneo sobre o género. Só que, hipocritamente - com aquela hipocrisia que só tem quem foi diminuido socialmente - querem que ele seja outra coisa do que aquilo que é a sua construção cultural e histórica mas querem que tenha o mesmo nome, usurpando assim a identidade cultural de todos aqueles que foram educados e criados numa determinada matriz cultural e que não é por serem supostamente maioritários (?????!!!!!) que não estão expostos a ela com baixa capacidade de defesa. E querem que seja a mesma coisa porque eles sabem, na pele, nos sentidos, nas vísceras - e por isso a hipocrisia tão dissimulada que nem os próprios a enxergam - que não é uma alteração que não custa nada e que lhes traz apenas a eles uma grande alegria.
O casamento é uma construção que faz parte da identidade cultural de todos aqueles que já se casaram. As identidades culturais não se modificam por decreto e quando desmoronam abalam o equilibrio daqueles que neles foram educados. Pode parecer ridiculo para muitos de nós, mas há muita gente que vai sofrer porque casou com a Maria pensando que o casamento era isso, a junção de um António com uma Maria e que vai chegar a casa baralhada porque agora poderá ser também a união de uma Teresa com uma Isabel. Há muita gente que deveria poder ter o direito de ver o seu casamento anulado porque ele já não está de acordo com a sua identidade cultural a que sempre pertenceu e porque não a consegue mudar assim de um momento para o outro. Atenção, eu não disse que por causa do eventual sofrimento dessas não menos eventuais pessoas se deve proibir o casamento a pessoas do mesmo sexo. Tinha dezoito anos quando vi o meu irmão beijar um homem e foi de um grande sofrimento para mim perceber não só que ele não iria correr sobre os trilhos dos estereótipos que tinha construído para ele, como perceber que eu tinha construído tantos estereótipos sobre ele ( e os outros) . Isso fez parte do meu crescimento enquanto pessoa, tanto que o amor que lhe tenho hoje é ainda banhado pela recordação da beleza e ousadia desse primeiro beijo em que o surpreendi. O que eu disse é que é uma hipocrisia quererem o casamento pelo que ele significa de instituição cultural e histórica e depois não perceberem o desajuste e o choque que isso pode representar em muita gente que tem a sua identidade cultural no facto do casamento ser uma união heterosexual. Os defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo querem fazer-nos crer que o facto de se poderem casar é um direito fundamental, quando o único direito fundamental que está em causa é eles não poderem em algum caso ser discriminados por não se poderem casar.
Quais as representações culturais mais legítimas? O que eu disse é que não é tema tão simples quanto isso, tem custos e custos que têm a ver com as representações culturais de maiorias desprovidas de poder (que não seja o da manipulação sobre o suposto poder que têm). O que talvez fosse simples era ter criado uma solução que desse conta da evolução social do reconhecimento social da relação entre duas pessoas, independentemente do sexo. Não para gays e lésbicas, mas para todos. É claro que falo como se estivessemos diante de um facto consumado. Eu sei. O ódio é a ideologia dominante e a proposta do casamento para pessoas do mesmo sexo é uma construção jurídica baseada tanto no ressentimento como no conservadorismo político.

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro,

gostava muito que viesses ver a minha primeira encenação, "Agora Eu Era", até 7 de Dezembro, no Chapitô.

abraço,

Rui Rebelo

Anónimo disse...

Irrita-me por exemplo ver o argumento estafado de que a democracia se qualifica pela sua capacidade de defender as minorias. Esse era o argumento que nós usávamos há vinte anos quando não sabíamos ainda que 3% da população mundial detinha 97% do rendimento e que 97%da população mundial ficava com 3%.

...E a mim irrita-me ter que dizer isto:

1- Há 20 anos, há 120 anos, há mais ainda que se sabe que 3% da população detem 97% da riqueza (cf. Manifesto Comunista, MARX, K. e ENGELS, F.)
Ou pelo menos eu já sabia isso há mais de 20 anos atrás...

2. Confundir essa "minoria" que é a que detem o poder politico e económico democracia com a defesa das minorias que não detem poder politico é erro manifestamente grosseiro
A qualidade da democracia tem a ver com a defesa dos direitos daqueles que não detem nas suas mãos, nem os podem ver estabelecidos em pé de igualdade.

Haja decência na argumentação

Uma santa noite

JPN disse...

atenção, para me acusares de um erro grosseiro tiveste de cometer um erro ainda mais grosseiro:
o de dizeres que eu tinha confundido uma minoria com a outra, o que manifestamente não confundi.

tentei foi demonstrar que a ideia da defesa dos direitos das minorias é muitas vezes um chavão de há cerca de vinte anos (ok, eu tirei uns anitos mas para que é que havemos de estar aqui com contas certas nestas coisas da idade, faz de conta que foi há vinte anos, fico mais feliz!!!) que esquece que aqueles que não têm poder podem não ser minoritários. mas nós há trinta anos não sabíamos disto assim. e o tio Marx e o que ele sabia não tem nada a ver com a história, e tu sabes bem.

por outro lado o que eu digo é que esta minoria que começou a defender o casamento tem uma grande capacidade de implantação mediática ( o que não é mal, nenhum, mas que o tem, na minha opinião tem. podes discordar mas dizeres que é um erro manifestamente grosseiro dizer que esta minoria tem uma forte capacidade de influenciar a agenda mediática é que me parece assim um bocadinho para quem está mais para o ladod a santa noite do que para a da (decente ou indecente) argumentação.

Até porque acabaste por repetir o meu argumento:
"A democracia moderna qualifica-se sim por desenvolver sistemas solidários de defesa dos menos poderosos,"

mas vá lá, uma santa noite.
:)

sem-se-ver disse...

«quando o único direito fundamental que está em causa é eles não poderem em algum caso ser discriminados por não se poderem casar.»

exactamente: e por isso, porque têm o direito a não ser discriminados por não se poderem casar, devem poder casar-se. porque, não o podendo, estão a ser discriminados.

:-)