quarta-feira, outubro 15, 2008

Já ia a chegar ao Largo António de Sousa Macedo, ao fim da Rua dos Poiais de São Bento, um dos muitos caminhos diários que percorro até chegar a este velho teatro. Ia com tempo. Tinha um grupo de pessoas que vinham conhecer o teatro às 10h, eram 9h30. Aquela senhora de vermelho estava parada no passeio. Chamou-me, a mim que ia em passo largo no meio da estrada:
- Queria tanto ir até àquela loja... - e aponta-me um boteco no princípio do próximo quarteirão.
- E quer ajuda, minha senhora?, disse eu estendendo-lhe o meu braço em arco para ela se apoiar. Aqueles quinze metros de repente tornaram-se uma estrada imensa que demoraram mais do que todo o caminho que eu tinha feito antes, e já vinha da Praça das Flores. Onde ela me contou que tinha estado a semana toda no hospital, as dores, sim, as pernas que já não andam, tá a ver, é isto?!, o seu Augusto que não queria que ela saísse de casa mas o ai homem, tenho de ir, nem que seja só para me distrair, a lágrima a escorrer do rosto, eu não lhe disse, não é pieguice, espero que aquelas lágrimas a correrem-lhe da cara lhe tenham feito tão bem como me fizeram a mim, devolveram-me por instantes a meninice, os tempos em que a minha avó Aurora se enrolava no meu braço e descia à vila de Caldelas, havia sempre um encontro, qualquer coisa que se dizia, ou se evocava - entre ali o Hotel de Caldelas e a Pensão Passos - que lhe furava o saco lacrimal, eu gostei de ser menino outra vez, por breves instantes, não importa, a vida é feita de pequenos e breves reencontros, ontem quando me deitei disse-lhe, sabes, hoje apetece-me adormecer como se pudesse sonhar com a infância, para que queres ser tu criança?, perguntou-me, não sei, apetece-me entrar por aqueles caboucos escavados na terra, quando havia obras por perto, corríamos por eles como se fossem trincheiras, esconderijos, e adormeci assim, hoje quando acordei, depois do banho, ía pôr um pouco do meu já clássico l'eau de issey miake, tinha a camisa azul escura e o casaco preto de cabedal, por momentos senti-me bonito, lembrei-me de quando roubava o old spice ao meu pai e dava estaladinhas na cara para imitar o homem do anúncio, durou dois segundos, talvez três, mas ficou, como não fica tanta coisa que dura e dura uma eternidade vazia nos meus olhos tristes.
- Que Deus o recompense, disse-me ela, e depois, olhando para mim perguntou, acredita em Deus, não acredita?
- Acredito, saiu-me tão natural que decerto, naquele cagagéssimo de segundo acreditei em deus. No tempo infinito que demorou desde que me separei dela à porta da mercearia e a sua entrada por inteiro dentro da loja ainda cheguei ao largo e lhe tirei uma foto, para o post, pensei, já sou isto, já sou naturalmente isto, vampiro de mim mesmo, do meu real. E mesmo não podendo dizer ainda agora que acredito em deus, já não garanto que o Deus dela não me tenha de facto recompensado.

8 comentários:

mfc disse...

Um conto de uma candura total e contagiante.
Só não sei se diria que acreditava... no deus dela!

foi dançar a bossa nova disse...

eu acredito que recompensou e fico contente que a tenha recebido.

sete e pico disse...

que bom que sabes disfrutar o teu tempo contigo e com os outros

Mónica (em Campanhã) disse...

Deus é sempre de cada um, assim, e às vezes está connosco mesmo quando nos é muito difícil acreditar

addiragram disse...

Acredito no "deus" que a habitava nesse momento de gratidão e reconhecimento.
Os afectos permitem essa "troca" entre passado e presente.Gostei de o ler.

Carla de Elsinore disse...

e olha que tb tive uma avó aurora..bjs

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Só queria dizer-te Quim que li com imensa satisfação, independentemente dos deuses ....
um abraço___

Carminda Pinho disse...

Vim respirar um pouco, e...saio mais forte, acredite.