domingo, agosto 09, 2009

Sol nado a nome posto

Foi na quarta-feira. Tinhamos ensaio, como de costume, a partir das 22h, até lá há um curso de Teatro. Naquele dia o Raul Solnado veio, é assim que se diz?, abrilhantar a sessão. Enquanto nós esperávamos cá fora. No fim veio sentar-se na mesa connosco. A Guilherme Cossoul é uma casa que ele chama sua e agora que a Câmara lhes encontrou um novo espaço, fervem os projectos, as ideias. Fala-se de tudo um pouco e, inevitavelmente, o Zé Boavida, o Miguel Santos e eu, começamos a levar a conversa para o Raul ele mesmo. Nem sei por onde começou. Imaginemos que começámos por aqui, pelo ser de esquerda:
Não me interessa saber se és de esquerda ou de direita. Interessa-me o teu carácter.
E começa a contar a conversa que Moreira Baptista teve com ele em Madrid, quando ele estava a braços com o seu menino de ouro, a abertura do Villaret. Ele tinha um problema. Ninguém lhe legalizaria uma sala de espectáculos que funcionava num piso térreo. O antigo ministro do Interior de Salazar deu-lhe a solução:
- Fazes a inauguração e convidas tudo o que for ministro e autoridades. Ninguém vai ter coragem para mandar fechar nesse dia e a partir daí já está aberto.
E assim foi. A abertura do Teatro Villaret aconteceu já com o dinheiro que Raul tinha ganho no Brasil. A carreira dele deu um salto muito grande com o Solnado vai à guerra, que ele tinha trazido de Espanha, de um disco de um grande comediante. Transcreveu-o, traduziu-o e um dia estava a fazer um espectáculo na Madeira com Humberto Madeira, era um espectáculo que já há dois anos que faziam lá, o público era sempre o mesmo, e por desafio do seu parceiro introduz a piada do telefonema para a guerra. Logo ali pediram bis. Estava marcado o sucesso dessa piada que também foi muito escutada pelas tropas, animando-as. Solnado pagou seis contos pelos direitos de autor do texto. Anos mais tarde, já depois do vinte e cinco de abril, numa recepção em Angola, Mário Soares apresenta Solnado a José Eduardo dos Santos, que o acolhe com um olhar entre o desconfiado e o zangado, já que por causa do sucesso deste seu trabalho, ele era tido como uma pessoa ligada aos militares, tendo aliás sido objecto de uma ameaça de atentado durante essa sua estadia em território angolano.
A noite corre-nos bem. Eu e o Miguel nem precisamos de desmarcar o ensaio. Aprende-se mais assim. Aliás, é o próprio Solnado que quando lhe perguntam qual foi a sua técnica diz, a do sempre em pé. A olhar, a mitrar, a tirar as medidas aos outros actores, a respirar a cena. Raul Solnado não estava à partida destinado ao teatro. Trabalhava com o pai, que tinha uma pequena indústria e comércio de escovas de arame. A sua familia paterna era de Viseu, terra onde o avó, por trabalhar de sol nado a sol posto, ganha em alcunha o nome de Solnado, que depois há-de passar para metade dos seus filhos, entre os quais o pai de Raul, que é luar ao contrário. O pai, embora reconhecendo que ele não era grande artesão no fabrico de escovas de arame, queria que ele enveredasse pelo negócio, e ele ainda estuda na escola comercial, enquanto que também faz teatro na Guilherme Cossoul. É lá que conhece Varela Silva e José Viana que, em circunstâncias diferentes, o metem na vida profissional.
A seguir é o trabalho com o Vasco Morgado. Ganhava dois contos mas o Vasco Morgado só lhe dava mil escudos. Era um trabalho na corda do arame, o dinheiro vinha às mijinhas, eles lá íam aflitos pedir ao empresário e o tipo lá desencantava vinte escudos de uma algibeira escondida no casaco. Era uma altura em que os actores não recebiam nem ao mês nem à semana. Metiam vales. Um uma vez até o dinheiro da caixa dos telefones levou.
- Mas isso não dava para sustentar uma família!- exclamou o Miguel.
E ele a rir-se, de lado acho-o parecido com o Luís Pacheco, hei-de perguntar à Sarah, ela já entrevistou os dois:
- Não tinhamos família, tinhamos as putas.
Começaram depois a receber à semana. A certa altura mudou de empresário, um que lhe pagava três contos e não lhe mostrava os forros dos bolsos. O Vasco Morgado pensou que ainda podia contar com ele e até o destinou para um elenco mas depois teve de perceber que ele já estava a trabalhar com outro empresário. Voltou para receber seis contos do Vasco Morgado. Raul diz que ele tinha o talento de saber como não pagar.
Começamos a fazer um resumo que a noite está comprida e o Raul está a ficar cansado. Do dinheiro não tem muitas histórias. Ganhou muito e esfarrapou muito mais. Sabe uma coisa e faz questão de nos dizer: viveu muito e viveu-o intensamente. Hoje só faz o que lhe dá gozo, diz a propósito de um filme em que está a participar, de um realizador novo mas com quem empatizou.
Ele tem o timing da comédia, do drama, da acção: percebe que a nossa conversa está a chegar ao fim, as duas deliciosas tostas de atum já foram, a cerveja já se acabou, e dá-nos a frase de fecho:
- A idade dá-nos uma serenidade, uma tranquilidade muito grande. A grande sabedoria que temos é estarmos uns com os outros, a conversar, a falar. Para que serve muitas vezes tão grande sabedoria se ela morre com o sujeito?
[Comecei este texto no dia 14.11.2008 já passava das duas da manhã, no final da conversa que tivémos. Nunca mais peguei nele. Agora, numas férias que tinha prometido, a mim, aos meus, sem posts, venho buscar este, como uma homenagem a um grande cómico, a um grande actor, a um especialíssimo ser humano, dedicando-o à Guilhas, à sua nova casa para a qual Solnado tanto contribuiu. Há algo de alegre em tudo o que é a nossa vida: imagino que o meu amigo Pedro Alpiarça terá agora por menos mortas e entediantes as horas da sua eternidade. Leio aqui também o texto da Sarah Adamopoulos]

2 comentários:

Cristina disse...

Um abraço.

Anónimo disse...

acho que querias dizer vilaret e não tivoli...