terça-feira, abril 21, 2009

Gioconda e as ondas da minha infância

"De facto, passei as primeiras décadas vivendo a minha vida como um romance do qual era simultaneamente o narrador e a atormentada personagem. Como os miúdos a um canto da sala, em conversa interior. Ou na praia atlântica da infância, contra as ondas, num concurso interno em que os concorrentes, sempre eu, se desdobravam em cometimentos e perfomances cada vez mais perfeitas , para o aplauso das dunas"
Luís, no Mal
Luís cita a inflação de nós próprios para falar de uma doença, a fantasia sem meios, de que padece desde que se reconhece. E dá o exemplo do concurso contra as ondas. Lembro-me imediatamente da minha infância tardia, no corredor da casa. Conheço bem esta doença que, aliás, me tem curado de outros males, como o tédio de mundo, que só mais tarde, muito mais tarde, se me manifestou. Havia no fundo do corredor uma figura de Gioconda. Eu passava horas das minhas tardes num concurso interno em que os vários concorrentes, Yazalde (eu), Eusébio (o meu principal adversário imaginário), Diniz (um segundo eu), Shéu (um segundo adversário imaginário) disparavam uma bola feita com as meias sacadas da caixa da roupa para remendar. Ficava mais ao menos a uns quatro metros. Tinhamos de acertar o mais possível do sorriso da Gioconda. E quando a pontaria dos meus heróis condizia com o meu sonho, eu, extenuado, recebia o aplauso da multidão histérica que estava, também, dentro de mim.O jogo prolongava-se horas e horas porque eu não sabia fazer batota comigo mesmo e por vezes, para grande desespero meu, quando eu já tinha decidido que seria o fim do jogo, a final, era o Eusébio ou o Shéu que acertavam naquele sorriso imaculado estampado na parede da sala. Nessas alturas eu atirava-me para o chão, berrava e pensava, só mais uma vez, desta vez é que é os campeões dos campeões. Não raro a uma final seguia-se uma finalíssima e depois uma superfinalissima, e depois uma super-super finalíssima e ainda mais uma super-super finalissíma agora-é-que-é. Não era por mim. Eu, desde criança, estava preparado para perder. Os meus heróis é que não.

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