domingo, novembro 15, 2009

Escuta-me...

Não percebo nada do que se passa no país onde vivo. E tenho algum receio das palavras que escrevo. Sinto, como nunca o senti, que quando a dimensão ética se perdeu na cidade é cada um de nós que tem de a reinventar para si mesmo, na relação com os outros, com a comunidade. Não vou falar dos casos do dia. Nem para inventar indignações, nem para me desdobrar em acusações baseadas em factos que não têm aquela qualidade de factos com que, antes desta avalanche de lama, a nossa realidade se habituara a certificar os acontecimentos da vida. Quando eu fui para a escola preparatória apaixonei-me pela história por causa disso. Os factos, diziam-me, eram credíveis. Não quer dizer que tivessem acontecido. Podiam não ter acontecido. Por exemplo, o meu amor pela história renovava-se quando um novo historiador, lembro-me quando Borges Coelho chegou ao meu conhecimento, aparecia a reinventar a história. Ora não se pode reinventar a história senão se assumir que ela foi mal contada. Não, a credibilidade não tinha tanto a ver com a natureza dos objectos produzidos, os factos, mas com o esforço de imprimir rigor ao controle de produção que havia na fabricação dos factos. Nunca pensei escrever uma coisa como esta, embora soubesse que mais tarde ou mais cedo também eu me tornaria vulnerável ao argumento: não confio nesta realidade, esta realidade perdeu o real. E quanto mais passivamente a aceitarmos como real mais estamos a deixar que a qualidade da nossa vida se desvaneça. Votarei de novo daqui a quatro anos, a dois, quando suas excelências quiserem. Mas até lá assumo dolorosamente a minha incapacidade de ver a realidade através deste circo histérico com que, como se valquírias debutantes, passam em meu redor o circo dos senhores procuradores, dos juízes, dos deputados, dos ministros, dos comentadores e jornalistas. Falem-me, quando me quiserem de volta ao vosso real, do colibri, do guarda-rios, das begónias, do vento e da insensatez com que a morte ceifa sem critério nem medida . Ou daquele jovem que hoje, pelas quinze horas, escolheu o canto mais recatado e isolado da basílica da estrela, para sofrer - num espasmo de dor tão silencioso que, como um grito, me sobressaltou - a dor de uma rapariga estupidamente levada desta vida.

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