terça-feira, março 04, 2014

A REALIDADE VITIMADA




"Um sítio onde não sou sucessivamente questionada ou menorizada sobre as minhas opiniões por ser comunista. Ali, respira-se livremente e fala-se bem alto. Discorda-se, grita-se. E do caos nascem coisas que por mais tempo que viva estão gravadas na minha pele."
Lúcia Gomes
MANIFESTO 74

Passou este fim de semana um ano da primeira iniciativa em que participei do QSLT | Que se Lixe a Troika. Se eu quisesse dizer o que é que eu retirei politicamente da minha experiência com o QSLT, não seria fácil. Foram muitas coisas e nem todas elas decorrentes apenas directamente da experiência única deste "colectivo de pessoas individuais". Algumas delas são águas de um mar cidadão a que vim dando crescente importância desde o 12 de Março de 2011. Dou especial relevo às acampadas do Rossio e aos Artistas e Públicos Indignados (a que me associei por convite do Paulo Raposo). 


Uma das coisas seria indiscutivelmente esta descoincidência entre aquilo que os media falavam de nós (principalmente quando se cansaram de assumir de que não compreendiam nada do QSLT e começaram a exibir a mesma ignorância com que, de uma forma generalizada, tratam toda a realidade politica que escapa aos dispositivos de compreensão já instalados) e aquilo que era a nossa prática, onde cada um poderia ter a voz que quisesse ter e onde as manipulações existentes eram, como em tudo o que é humano, decorrentes das idiossincrasias de cada um e não de planos orquestrados pelo partido a, b, ou c. 

Outra seria a de que vi ali a demonstração comprovada que o sectarismo político que associamos aos movimentos e partidos políticos de Esquerda não é um facto politico consumado e inevitável, resulta sim do calcar e recalcar do mesmo caminho divergente em que a política se transformou num negócio ideológico (e muitas vezes de contrafacção). O nosso corpo nunca esquece o que um dia aprendeu. Seja um movimento, um toque, um cheiro, um silêncio, um som. Tenho gravado no meu o riso, a alegria, a força, a explosão dos primeiros anos a seguir ao 25 de Abril onde as pessoas festejavam juntas, subiam ao mesmo palanque. Durou pouco, é certo. Mas ficou-me na memória. E naquelas reuniões do QSLT no Espaço Sou, nos Amigos do Minho ou na Guilherme Cossoul de Campolide, essa memória de uma festa comum acordou. 

Mas talvez aquela que colocaria em grande destaque foi o de ter percebido, e começado a trabalhar, o sectarismo ideológico com que eu pensava o Partido Comunista Português. Tenho como todas as pessoas sabem pelo que publico aqui ou no facebook as maiores divergências políticas com muito daquilo que este partido defende. E mesmo quando defendo as mesmas coisas as mais das vezes não as defendo da mesma maneira. Tenho aliás opiniões que eu sei, eriçam todos os pêlos dos meus companheiros do QSLT que são comunistas e que ainda continuam ligados a esta minha pagela do facebook. E também é verdade que para desfazer este meu sectarismo ideológico fiz uma operação política arriscada: coloquei os partidos, todos eles, num plano inclinado em relação às suas capacidades (e vontades) de materializarem expectativas comuns e corresponderem ao que a comunidade deseja realizar. É o relativismo político, pá!, claro que também é. 

Não é só isso no entanto. É o aperceber-me de que naturalmente, uma tendência para a convergência que foi produzindo sentido em cada um de nós desde há 40 anos, levou a uma estigmatização natural do contributo do Partido Comunista Português e dos seus militantes para a sociedade portuguesa. Lembro-me de aos quinze anos ter escrito a um cronista de um jornal que eu admirava muito pela sua escrita (há dois géneros jornalísticos que me fascinam muito, a entrevista e a crónica) e que escrevia num jornal de direita (era um templo em que era fácil perceber os jornais de direita e os de esquerda porque eles se assumiam assim) elogiando-lhe a prosa mas vituperando-lhe o anti-comunismo. 

Entre o jovem de 15 anos que defendia os valores de tolerância (até para se defender de uma certa intolerância religiosa com que fui, brandamente, educado) e o homem de 50 anos que a 20 de janeiro entrou no plenário do QSLT, vai todo um abismo. Mas apercebi-me de que hoje, ao contrário de ontem, já não precisamos de ser anticomunistas. O longo caminho de estigmatização do PCP ( e nem vou discutir o papel que o próprio partido pode ou não ter nisso, um ambiente comunicacional é interactivo e cheio de reciprocidades) permite-nos dizer apenas com ar consensual que eles são muito bons nas câmaras, nas manifes, na festa do avante e, vá lá, com alguma condescendência na defesa dos sacrossantos direitos dos trabalhadores ou com um lugar na tribuna das comemorações sobre o 25 de Abril. E depois encolhemos os ombros e pensamos, coitados, ficaram na pré-história, são pós-traumáticos de coisas como a clandestinidade, a prisão política, a guerra de África, o PREC. É o consensualismo democrático em que bebem partidos de esquerda e de direita. 

Não vou apôr à estigmatização a romantização do contributo do PCP. Apenas reconhecer que a estigmatização é sempre dupla face: ela produz efeito no que é estigmatizado e também no que estigmatiza. E é esse efeito em mim que me preocupou e me levou a tentar perceber o que se passava. Não era uma coisa de querer ser bonzinho com os comunistas que estavam ao meu lado a combater por uma causa comum, e o modo como os via generosos e tolerantes e assertivos e empenhados e focados sempre mais no colectivo do que em egotismos larvares, era muito mais o eu querer ser melhor pessoa. E o de o quanto me vim apercebendo que a componente política é essencial para o meu desenvolvimento humano.

Porque o PCP sendo um partido ideologicamente muito robusto (e pesado), com um património político construído na base do sofrimento e da resignação, defende-se muito melhor da estigmatização a que é sujeito do que nós da estigmatização a que o votamos. O Partido Comunista vive há bastantes anos numa espécie de clandestinidade política em democracia a que foi sendo votado, primeiro pelos movimentos políticos que se assumiam como anticomunistas e depois por todos os sectores, da esquerda ou da direita. Dizer que ele se adaptou bem a essa realidade é muito conveniente. É claro que ele já tinha um conhecimento histórico do que era viver em ditadura e na clandestinidade. Mas se ele não quisesse ser poder, se ele quisesse ser só oposição como nós dizemos (digo nós porque tantas vezes o tenho pensado e dito) então nunca compreenderíamos que ele lutasse pelo seu lugar no parlamento europeu, no parlamento português, nas autarquias. Se o virmos por esse lado de repente em vez de um coro de oposicionistas dinossauricos passamos a poder vislumbrar um pragmatismo e um empenhamento nas condições mais pequenas da vida das pessoas. Nós dizemos que os comunistas portugueses falam como se fossem só oposição, como se não quisessem ser poder, como se repetissem sempre a mesma cassete.  E repetimos para toda a eternidade a mesmíssima cassete sobre os comunistas . É claro que os dinossauros são eles. Nós somos pós-pós-pós modernos. 

Não pretendo discutir as razões que nos fazem dizer isso. Nem a falta de razão que nos assiste quando perfilhamos este pensamento pronto-a-pensar sobre os comunistas portugueses. Que chega a ser ridículo. Só venho chamar a atenção para os efeitos nefastos que esta operação de desqualificação, de menorização dos comunistas portugueses como agentes políticos tem para a qualidade da nossa vivência democrática. Não são eles que são as vitimas. Somos nós sejamos nós com eles ou simplesmente nós, sozinhos. Ela , a estigmatização autoriza a prévia desqualificação discursiva antes da mensagem propriamente dita. Ou, independentemente da mensagem propriamente dita. E que trabalha níveis mais profundos do nosso comportamento, como a sanção ideológica sobre o outro, o outro que não pensa como nós, o outro que vê as coisas de uma maneira diferente da nossa, o outro que não faz parte do nosso grupo, a que enfaticamente chamamos nós e que não é mais do que a projecção egóica da visão de mundo de cada um de nós sobre a visão do outro. Porque o "nós" que estigmatiza o comunista português, o partido comunista português, é um nós sem nó, sem rede, sem elo, é um nós desligado e vazio de uma comunidade que o caracterize. É um "nós" que junta o militante activo de extrema-direita com o militante activo de extrema-esquerda. 

Já o disse, não pretendo apor uma visão romanceada do papel dos comunistas portugueses, do Partido Comunista Português. Nem excluir os mesmos deste sistema, como se fossem apenas vitimas. Só que é evidente que não estamos a falar do mesmo nível de prejuízo para a tentativa de construirmos uma percepção comum da realidade a estigmatização a que o PCP é sujeito com aquela a que por exemplo este partido vota o Partido Socialista. É a realidade enquanto possibilidade de experiência comum que é, em primeira mão, vitimada. Estou apenas a dizer-vos o quanto aprendi por começar a ouvir, falar, conversar e discutir com aquele ou aquela militante comunista sem pensar que ela ou ele eram militantes comunistas. As uniões de ideias eram entre razões não entre partidos. Quantas vezes não vi pessoas do mesmo partido a apoiarem as ideias de uma pessoa de outro partido ou sem partido nenhum contra a opinião de uma pessoa do seu próprio partido e nunca isso me pareceu estranho.

Aos 40 anos da nossa Revolução de Abril talvez seja altura de a sentar no divã do psicanalista e abordarmos de olhos nos olhos esta estigmatização do Partido Comunista Português. É uma doença muito profunda e que actua a níveis muito diferenciados do discurso político, social e até, religioso. E que está também ligada, intimamente ligada, a este este odioso centralismo democrático que mina o nosso sistema democrático incapacitando-o de produzir verdadeiras e reais alternativas de poder, e que escancarou portas ao maior ataque ao nosso sistema político a que pude, pudémos assistir nos últimos quarenta anos. Veio de fora, pois veio. Mas acobertou-se cá dentro. 

E o que fazer? Nas ciências da comunicação a pragmática das relações comunicacionais ensina-nos a perceber que elas se baseiam numa estranha reciprocidade, mimetismo que tende para um padrão de comportamento. Quando há uma situação em que verificamos que há um comportamento que causa dano aos próprios ou aos que com eles se relacionam, qualquer discussão sobre o comportamento de cada um sem alterar um determinado padrão de comportamento é, ou acaba sempre por caminhar para ser, uma discussão sobre o poder, também o poder de definir o que é ou não o comportamento correcto.  

Muitos dos que me lêem estão a pensar que estou a defender os comunistas portugueses e o Partido Comunista Português. Ao fazê-lo estão a integrar-se no padrão de comportamento da estigmatização. É claro que me podem dizer que o PCP também estigmatiza grande parte dos movimentos políticos à sua direita, e muito principalmente o PS, o que faz com que se crie um circulo de exclusão. É verdade. Só que é evidente que no que toca ao prejuízo para a tentativa de construirmos uma percepção comum da realidade, a estigmatização a que o PCP é sujeito por toda a sociedade política portuguesa, não se encontra no mesmo nível de grandeza, na mesma escala de valor daquela a que por exemplo este partido vota o Partido Socialista

Estou a defender a ruptura, a mudança do padrão com comportamento de desqualificação e estigmatização do Partido Comunista Português e dos comunistas portugueses e isso é defender um novo contexto de comunicação. 

É evidente que a experiência porque passei não é comum na vida política portuguesa. Se o fosse, por exemplo, os partidos da esquerda portuguesa defendiam o que lhes é comum e não deixavam de o fazer com receio de que pudessem vir a ser atacados de uma forma muito maior pelos outros partidos de esquerda. Chega a ser ridículo que o PS, o BE, o PCP andem a clamar em tempos diferentes contra a morte do Estado Social e não sejam capazes de fazer um coro sobre esse mesmo assunto. É por isso que o cidadão comum não os entende. Ele vive num outro paradigma. A direita mesmo defendendo coisas que são contra a vida das pessoas comuns, vive e luta dentro de um paradigma da reversível irreversibilidade que está mais próximo daquilo que é a percepção comum de cada um de nós. 

É por não ser comum que sinto necessidade de partilhar esta reflexão. Eu, que vivi numa ludoteca política no 25 de Abril, pude encontrar-me depois num micro-laboratório político, o QSLT, onde pude aprender que a inevitabilidade política de uma esquerda de costas voltadas uns para os outros é uma treta que germina na terra para a enfraquecer e torná-la estéril.  Não quero, recuso-me fazer parte de uma realidade vitimada. E o primeiro passo é reconhecermos, sem mas nem meio mas, que fomos cristalizando a nossa opinião sobre o Partido Comunista e os comunistas, e que isso não nos permite acolher o seu contributo para a vida política com a generosidade que é devida a um partido com a sua história, a sua prática e a sua implantação na comunidade e que dessa estigmatização somos muito especialmente, vítimas. 



2 comentários:

queijo, azeitonas e medronho disse...

Não percebi grande coisa de onde querias chegar. Mas, correndo o risco de me enquadrar "no padrão de comportamento da estigmatização" do PCP, pergunto a que propósito designas tantos louvores ao partido que nem deveria ter assento no parlamento, dado o seu estatuto ideologicamente anti-democrata?

JPN disse...

Sim, acho que corres seriamente esse risco. Não posso contrapor-te nada, claro porque percebo que não me levas a sério quando digo que não vou apor à estigmatização a romantização do papel deste partido, tu achas que eu lhes designo muitos louvores. e eu, lendo, relendo o texto, não os encontro. talvez treslendo-o o conseguisse. não deixo no entanto de notar que no nosso melhor pensamento democrata cai a nódoa, Zé: representando no universo eleitoral os comunistas portugueses algumas centenas de milhar de portugueses,como é que colocaríamos os seus representantes no Parlamento? De pé? abraço