terça-feira, julho 22, 2003
Ainda a prisão como horizonte...
Vou utilizar este espaço pela segunda vez [a primeira foi quando reagi a um título do Campo de Afectos, que se debruçava sobre a demissão de João Grosso] , tentando dialogar com o texto do "SocioBlogue" aqui citado, que merece ser lido com muita atenção, não só pela riqueza da proposta de discussão que ele contém, também por alguns aspectos relacionados com a dimensão comunicacional que está presente, inevitavelmente neste texto.]
Vamos a estes últimos: em primeiro lugar, SocioBlogue, implicitamente legitima-se através de uma autoridade de uma ciência da qual ele é, pelo menos, praticante autorizado. E digo pelo menos, dado que a presença na blogoesfera, com o que isso tem de imediatismo, produz um ganho de subjectividade, descontextualizando, ou desfocando, automaticamente o protocolo científico inerente à prática sociológica.
O que quer dizer que o leitor, desprevenido, poderá tombar um pouco neste terreno escorregadio que o sociólogo, corajosamente, aceitou trilhar, e, não tão preparado quanto ele, legitimar de outra forma o exposto, que não pelo próprio valor do enunciado apresentado.
Isto assume particular importância quando o texto em referência se coloca numa posição de recentramento do debate. E fá-lo de duas formas: uma que me parece especialmente produtiva, de trabalhar a vulgata que corre da boca do povo para a dos jornais e destes, já, para algum discurso político. Discurso sobre uma justiça redentora, justiceira dos humilhados e ofendidos deste mundo que, cega, surda e muda, trata com o mesmo despudor, poderosos e humildes.
A tese de que a justiça não trata de igual modo poderosos e humildes, que todos temos por um tanto ou quanto verdadeira, não resulta de uma qualquer discursividade própria da arquitectura jurídica de um regime democrático, que se saiba. Mas de um conhecimento empírico com que vamos identificando uma perversão na aplicação dos princípios porque se rege a nossa prática neste domínio. Esta distinção é fundamental para se perceber que textos como o de Santos Silva, não vão, no contexto desta diferenciação de tratamento judicial entre poderosos e humilhados, inscrever-se numa discursividade já existente, de explicita defesa dos poderosos. Pelo contrário. Paulo Pedroso poderá, para nós, ainda não ter deixado de ser um poderoso deste reino, no entanto está implícito no discurso de Santos Silva que, ao escrever, ele sente que está a escrever sobre alguém a quem, por lhe atribuirem um determinado poder, está sujeito à mais desabandonada das impotências e fragilidades.
São precauções fundamentais. O senso comum pode inscrever automaticamente o discurso de Santos Silva, ou de outros, como o de Vital Moreira hoje no Público, num discurso de defesa dos poderosos e senhores do reino, desautorizando a palavra antes mesmo de ela ser proferida.
[Sempre o senso comum pôde fazer tudo o que quis, até achatar o redondo da terra e torná-lo num campo, aparentemente, sem fim.]
É verdade que o SocioBlogue refuta esta tese do senso comum e não segue por aí. Nem outro caminho seria de esperar a um blog que se autoriza num campo de peleja com esta sorte de pensamento em vulgata. Mas tem encontro marcado com o senso comum, quando afirma " até a insinuação de que Paulo Pedroso não está a ser tratado como os outros também parece ser justa". Como se desmontasse a tese de que Santos Silva esteja realmente a pedir que Pedroso seja tratado como os outros, dado que Santos Silva saberia que Paulo Pedroso não é tratado como os outros.
E isto porquê: "Nem todos os reclusos têm «direito», por exemplo, a visitas fora-de-horas, a estar na Ala F do EPL, a celas individuais com casa-de-banho pessoal e a outras simpatias da DGSP que estão longe, muito longe, de estar generalizadas no nosso sistema prisional e de beneficiar a maioria dos reclusos menos mediáticos. "
Antes de mais, uma dúvida: já ouvi várias versões sobre as visitas fora-de-horas. Uma delas, diz-me que elas não têm a ver com a especialissima condição do detido, sim com a dos visitantes, nomeadamente a dos deputados, que poderão não estar sujeitos ao mesmo tratamento das visitas comuns. Não me quero meter por aí, mas fica-me a dúvida.
[ desloquemo-nos um pouco da questão do Paulo Pedroso para reflectir na dimensão terrível que este enunciado carrega. No séc.. XXI, ter direito a uma cela individual com casa de banho pessoal, é um recurso disponível a apenas a alguns, os abençoados locatários da Ala F do EPL. E isto não seria nada, senão nos confrontássemos, no prosseguir do texto, com as "benesses" a que todos os outros, mais humildes, são obrigados. Deixemos, definitivamente, de tecer loas à nossa humanidade e às nossas superioridades democráticas. Até pode ser que sim, noutros contextos. Mas agora confrontemo-nos com a desumanidade com que tratamos alguns de nós, mesmo que as estatísticas digam que haja a probalidade de alguns de nós nunca sermos realmente nós.]
Ora esta argumentação é uma amálgama muito retorcida, da qual não se pode extrair certidão de pensamento. A Ala F do EPL, se existir, foi criada como um fim e encontra-se enquadrada no sistema penal. Não foram vistas gruas, betoneiras nem aquele magote de trabalhadores que ali na circunvalação acabam à velocidade da Luz estádios de futebol, deslocando-se para o Estabelecimento Prisional de Lisboa para trabalharem nos aposentos de Sua Majestade, o Dr. Paulo Pedroso. Não havendo nenhuma causualidade ou relação entre uma e a outra, não estando enquadradas, um pertence ao sistema penal português, outra a uma argumentação de um político, de um sociólogo, de um amigo, não podem desautorizar-se uma à outra.
Eu não disse refutação. Disse desautorização. Tanto a argumentação que permite que haja celas especiais (confesso que o que a mim me revolta é a persistência das outras celas não especiais) como a de que diz que personalidades mediáticas como Paulo Pedroso talvez não estejam a ter a mesma presença perante a lei podem ser refutadas, claro. Mas não assim.
Suspeito aliás que o próprio SocioBlogue pressentiu isso ao tentar um recentramento apressado do debate, dizendo "a questão central não está em perceber se há, ou não, igualdade de tratamento entre os presos preventivos mediáticos e os outros. Esta questão é , sobretudo, de Índole política ou de Âmbito jurídico. "
Para o SocioBlogue "As questões sociológicas fundamentais estão, em primeiro lugar, em compreender porque é que o caso de Paulo Pedroso provoca tantas discussões em torno dos «problemas processuais». E, em segundo lugar, em perceber como é que problemas que eram anteriormente desvalorizados, secundarizados e negligenciados são agora classificados como essenciais e incontornáveis".
Não sei como classificar esta atitude em termos de prática comunicacional. Vou tentar fazer o desenho dramático desta situação, para ver ela é mais clara:
Entra A. Santos Silva.
A.S.Silva: Paulo Pedroso não está a ser tratado como todos os outros em relação ao seu direito ao recurso.
Entra o SocioBlogue:
SocioBlogue: Paulo Pedroso está a ser mais bem tratado que os outros.
A.S.Silva: O quê?
SocioBlogue: Nem todos os reclusos têm «direito», por exemplo, às mordomias da Ala F do EPL...
A.S.Silva: Mas eu estava a falar de...
SocioBlogue: Além disso essa questão não é a mais importante em termos sociológicos. Só tem relevância política e jurídica. Sociologicamente o que é importante é que....
Mas sobre as questões sociologicamente importantes também quero dar a minha palavra. Não autorizada. Já venho.
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