segunda-feira, agosto 11, 2003

Desastres de Sofia

Iria sangrar, avisou, esclarecendo-se sobre uma impossível fuga, enquanto desligava a televisão universal do subúrbio. Depois, calcorreando todos os mitos onde a sobranceria do homem se sobrepunha à própria façanha de homem, acabou finalmente por escrever que desta vez não, nunca. Havia uma pergunta snipper, encostada ao lábio arroxeado pelo frio seco, mirando o alvo, premindo o gatilho. Se fosse um poema-filósofo não teria tido melhor sorte. Ao invés de sangrar foi no sangue que se estatelou, a questão, a pergunta, fosse o que fosse. 2. Na ausência do mosto, do sangue da uva negra o labirinto televisivo vociferava os números do lagar. Tremendo, temendo, o poema revirou o negro das imagens. A sua imaginação intranquila recordava a profecia de um guerreiro, “ o fim do ofício de matar será o nosso próprio fim” 3. A crisálida é menos violenta do que o objecto esvoaçante que aí vem. Não há nenhuma tese na poesia invísivel, no gesto devir. Há cansaço e insistência, aquele tornear do desespero borboleta; do rebentamento com que a terra empesta o ar habitante. No velho teatro mundial o dedo indicador inscreve-se na pronúncia das coisas. 4. As mãos formam o sentido do regresso à ideia, ao gesto da ideia. A explicitude inútil de apontar, de caçar crisálidas. De Sarajevo a Beirute, o rosto enrugado daquela velha mutante atravessa o subúrbio na espinal medula da violentação. Por mais cruéis que sejam as exéquias, é a flor que abana o prosseguir. O troar das salvas da morte? Brando gesto menor face ao rebentamento com que a terra sulca todas as coisas.O ofício do guerreiro conhece-o, a sua coragem vã não desoculta o segredo original. A heroicidade do vira-lata , da flor, da borboleta, das rugas no rosto, é mais tecedora. 5. A manhã bósnia é, delirantemente, a manhã mundial da catarse do subúrbio. Dos lugares em que a música maviosa dos morteiros não interrompe o inexistente pasmo. Madrugada que se espanta da sua morte prematura. Amanhã o retomar da arquitectura desflorará a inocência das cidades destruídas. 6. A aldeia geral entretecida com o sussurro suburbano. O cristalino ribombar da besta natural nos olhos cerrados de merda, mitema da avestruz encapotada, selvagem forma de virgindade. O espectador-morto, encaixotado no seu suicídio de mundo 7. Morte da morte. Presença inesgotável, insuportável. É o excesso de angústia que petrifica a ingenuidade da fuga, do desejo de Berlim. As palavras-cor definham no palato ocre que saboreia o espectáculo interminável da maçã. 8. Incansavelmente vistoriou cada frame, cada fotograma. Aquela ideia de bandos de putos recuperando as armas caídas do corpo bélico dos mortos, e de que, de ora em diante, nem mesmo a cruel inocência de Sofia seria um lugar deste mundo, gelava-lhe de horror o sangue de cobra rastejante. Morro já aqui diante da tensão de respirar o perfume do nojo, pensou, no cemitério dos vivos. Morro e será de imensidão trémula a mão que me guia. Quando os números repelentes repetirem a sala vazia, tornarei à insensatez de falar da minha morte, acrescentou sofrega mente. 9. Os lugares evaporavam-se. Iam-se no mansinho do estilhaçar, deixando centos de milhar de múmias às arrecuas na devoração da violência dos gestos kamikaze. Regressava o inexpiável.. O inexpiável de Morin. O poema terminará um segundo antes da marcha triunfal da poesia do mundo. Do estertor poético das coisas. 10. Estava já o devir infindo dentro da sua mão, na concavidade rugosa da sua mão vazia, era a apoteose dos cheiros invencíveis, dos sons galgantes no irredutível musical da surpreendente respiração dos vivos, das promessas de cores nas estações no inicial dos ciclos, dos macios gestos da voz arremesso, era a apoteose da morte gritando em surdina, delírio precário riscando nomes no mapa-múndi, escrevendo no mesmo mapa que o estratego percorrera, dias antes, no rasto dos seus dedos sujos e alvos de uma experiência isenta da dor de sangue. Isenta da dor de sangue seu. A Europa era uma putéfia interminável sobre os Balcãs, rasgada pelo próprio medo e teimosia alarve, desmobilizada no tecer nobre e digno do seu antiquíssimo ofício de concubina. Estava já o devir infindo dentro da sua mão, na concavidade rugosa da sua mão vazia, era a apoteose dos cheiros invencíveis, dos sons galgantes no irredutível musical da surpreendente respiração dos vivos, das promessas de cores nas estações no inicial dos ciclos, dos macios gestos da voz arremesso, era a apoteose da morte gritando em surdina, delírio precário riscando nomes no mapa-múndi, escrevendo no mesmo mapa que o estratego percorrera, dias antes, no rasto dos seus dedos sujos e alvos de uma experiência isenta da dor de sangue. Isenta da dor de sangue seu. A Europa era uma putéfia interminável sobre os Balcãs, rasgada pelo próprio medo e teimosia alarve, desmobilizada no tecer nobre e digno do seu antiquíssimo ofício de concubina. [Desastres de Sofia, 1995)

Sem comentários: