quarta-feira, agosto 13, 2003

E fez-se luz...

"Eu escrevi, publiquei e re-publiquei uma das mais duras (e raras) criticas feitas ao Acontece na altura em que o programa se auto-comemorou, com toda a fina flor do nosso establishment cultural diante das câmaras, governava o engenheiro." Pacheco Pereira em o Abrupto 1. Li uma vez esta frase e segui o texto até ao fim. A certa altura há algo que não me soa bem. Eu tinha lido o " O que não aconteceu no acontece", a que Pacheco Pereira faz referência. Voltei atrás e eu não acreditei no que estava a ler "na altura em que o programa se auto-comemorou, com toda a fina flor do nosso establishment cultural diante das câmaras, governava o engenheiro". 2. Eu ainda não acredito no que estou a ler, nos sentidos que eclodem no lido. Treslido. Travo a língua, um filhos de uma grande mãe seria a única expressão com que conseguiria saudar aqueles que fizeram terminar o Acontece. Que não aqueles que hoje expandem a sua retórica sobre o assunto. Por isso calo-me. Nem aqui me permito esta liberdade de me indignar assim. Mas fica dito que era o que eu diria se a minha língua não viesse com um travão como apêndice, instrumento utilissimo em dias como este. 3. Filhos de uma grande mãe! Não pode ser possível. Digam que não é possível. Mas digam-no com clareza. 4. Por favor, é muito importante para todos nós. 5. Para nós que damos os dias, os meses e os anos da nossa vida a trabalhar pela cultura em Portugal. Sem andarmos nos píncaros, a pôr-nos em bicos dos pés. Que só fomos notícia quando, mesmo neste país, era quase impossível fechar os olhos ao que fazíamos. Que não acontecíamos no Acontece, também. Que acontecemos em bairros onde quase não vai ninguém senão aqueles que o habitam. Que acontecemos em escolas, em empresas, em prisões, em hospitais. Nas aldeias, nos povoados. Cada palavra que escrevo é retórica. Mas para mim que as escrevo cada uma delas têm mais de que um nome, um nome concreto, que só não escrevo por pudor. De artistas transmutados em divulgadores, animadores, sensibilizadores. Porque é preciso que a arte se misture com o viver das pessoas, que as pessoas misturem as suas vidas com a arte, com a cultura. 6. Gente que muitas vezes não acontecia no Acontece. Mas que defende a sua existência. Que se indigna. Mesmo sem ter compreendido o que agora, abruptamente, me foi dado intuir. 7. Senti sempre que era estranho o Acontece, não um mero magazine cultural como alguém aqui na blogosfera defendeu, mas o único jornal cultural diário, tenha motivado tanta truncagem de números, sobre o verdadeiro número de page views do seu contador de visitas. Ou, tanta destilação de preconceito contra os apoios do estado à cultura, e, por, inerência, aos que os recebem, ou contra umas pretensas elites que dele fariam gáudio e festa. Ou tanta falsidade ministerial sobre os seus verdadeiros custos. Todo aquele pensamento minorca e característico de um país culturalmente aleijado que em vez de considerar 48% de analfabetos funcionais como um patamar a ultrapassar, via nestes mesmos números a oportunidade para legitimar um país de fado e futebol. 8. Escrevi aliás uma vez que dizer que o orçamento do Acontece dava para pagar uma viagem à volta do mundo a cada um dos seus telespectadores , só revela a dimensão de um mundo pequeno e atarracado, construído à imagem e semelhança de quem o profere. 9. Porquê a mentira?, sempre me perguntei. Que interesses obscuros a ela tinham conduzido? 10. Porque é evidente que não se termina com um programa que durante dez anos prestou tantos e tão relevantes serviços à cultura portuguesa, apenas porque há divergências editoriais. Legítimas, não é díficil encontrar um largo espectro de pessoas, dos mais diversos quadrantes, que subscreveria as criticas que têm sido feitas ao Acontece. Principalmente quando estamos a falar de um país que, quanto à cultura, tem problemas tão profundos e entranhados na nossa própria carne. Um dos grandes problemas editoriais do Acontece é que durante anos e anos aconteceu sózinho. Uma análise conscienciosa do percurso deste programa não poderá deixar de verificar que a vinda de outros programas culturais veio obrigar o programa a recentrar-se. Que melhorou. 11. Uma das grandes pechas do nosso jornalismo cultural, na imprensa escrita, na rádio, ou na televisão, é que, como a cultura não tem foro de cidade na nossa vida quotidiana, a sua edição misturava, amalganhava, todos os recursos de que esse mesmo jornalismo podia dispôr. Na ausência da reportagem, da entrevista, da própria notícia, era quase sempre a crítica que ficava com o encargo noticioso, o que, para além doutros efeitos perversos, tinha o de não haver confronto de opiniões. A cultura portuguesa viveu e vive ainda, numa sociedade democrática, sob o efeito nefasto de práticas autistas e que favorecem a "unicidade" de pontos de vista. 12. Para além de outros efeitos perversos, disse. Quem é que sabe escrever, opinar ou criticar sobre teatro, cinema, artes plásticas, dança, folclore, música ( e quantas músicas...) e ao mesmo tempo sabe as permissas de uma edição de carácter jornalistico sobre a cultura? E o outro lado? O dos jornalistas? Quem no campo dos média sabe tratar com dignidade a coisa cultural portuguesa, aquela que habita e respira em todo o país e não só nos salões alcochoados, nas suas diferentes áreas? 13. Porque este é o País que aconteceu no Acontece. À falta de visão para mudar o país, matou-se o mensageiro. As limitações da actividade crítica, que todos nós subscreveremos, o seu elitismo, o seu funcionamento em circuito fechado, são uma consequência do exercício da actividade crítica em Portugal. A todos nós nos causa dano, principalmente aos criadores que não estão na lista diminuta dos eleitos, dos circuitos palacianos. Há um país que não acontecia no Acontece, não haja disso a minima dúvida. E muito desse País que não acontecia no Acontece, ficava de fora porque, ao invés do que parecem fazer crer, o programa tinha limitações de equipa e de orçamento. E tinha-os porque era um jornal cultural e um jornal cultural diário. Quanto maior a sua actividade mais escassos os seus recursos. Agora é inegável que, no que toca ao jornalismo cultural, o Acontece remava contra esta maré. 14. Consulte-se a lista do último abaixo assinado contra a extinção do Acontece e verifique-se quantas daquelas pessoas aconteceram no Acontece. Se reconhecidamente muitos de nós somos excluídos do Acontece, porque é que mesmo assim, nos indignámos e opusémos ao fim do Acontece? Alguém, nos que falam genericamente sobre o Acontece, tem uma opinião sobre este facto? 15. Eu tenho o meu testemunho. É que se o meu mundo pessoal enquanto criador, enquanto animador, não Acontecia no Acontece, vi neste programa, ao longo dos anos, uma tentativa séria, esforçada e competente para investir num jornalismo cultural que alargava significativamente a visibilidade da actividade cultural e artística no meu país. Só o esforço e o empenho continuado e sistemático em jornalistas editarem jornalisticamente a cultura deste país, vale o que este país paga pelo Acontece. 16. E, depois desta justa retribuição, ainda recebia por bónus um Carlos Pinto Coelho embasbacado com a cultura dos livros, mas que leva o seu basbaque à honestidade de ler (ou de ter quem por si os lesse) as obras que apresentava. Uma das imagens mais relevantes que ficará deste programa eram os livros profusamente anotados, cheios de post-its, que ele ia saltando de página em página, confrontando os autores com o exacto das suas palavras. Talvez a sua voz tivesse aquele tique de quem gosta de se ouvir, talvez os seus olhos esbugalhados deixassem fazer cair uma paixão que muitos entenderam como um acriticismo reverente e pasmado, mas bastava ouvi-lo para - gostando ou não dele, o que é que isso interessa, usamos e abusamos do nosso gosto neste ofício insano de desgostar do mundo - sermos nós a encurvar a tola reverente pelo sentido ético deste raro dinamizador cultural. 17. Muito mais poderia ser dito, a favor ou a desfavor do Acontece, mas tudo isso, iria engrossar esta suspeita intuida de que não é o Acontece, o real alvo deste triste vilipêndio, resultante de uma sanha revisionista de que, na sua incontrolada mão delapidadora, não há memória em Portugal. Senão nos anos de um gonçalvismo de triste figura.

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