sexta-feira, agosto 15, 2003

Máquina da Verdade

[ ao deixar um comentário num tijolo de o Muro sou atirado para a memória do meu estágio na SIC, donde me salta esta história que, para mim, tem sido determinante para o modo como eu encaro o jornalismo televisivo (não confundir com os seus derivados] eu estava na praça pública e, como todos os estagiários, íamos acompanhando diferentes jornalistas, que, durante esse tempo, eram, num clima bem informal, uma espécie de irmãos mais velhos, a quem encomendávamos as nossas notícias-sombra (o estagiário escrevia, paralelamente ao jornalista, a peça respeitante ao assunto que fora acompanhar, escrita feita num tempo mais demorado, com reescrita permanente, aprimorando o estilo, a concisão e a objectividade). quando me calhou a vez, e o privilégio, de estagiar com a ana margarida matos (hoje, póvoa), ela estava com uma peça em mãos sobre um padre que ali para os lados de mangualde, colocava em estereofonia os sons do terço e da novena, regando o vale e os montes de veraneio com aquele salpicar de religiosidade impúdica. já que o estágio em princípio era feito em Lisboa, por generosidade da estação, e de odacir júnior que comigo teve de repartir o quarto, lá fui também. a história tinha um fundo simples, aquele confronto entre um portugal interiorizado na sua ruralidade, onde o peso da Igreja sanciona quase todos os anacronismos, com um outro, que arrasta a asa a uma modernidade apressadamente recolhida na migração para a capital. mas não era tão simples assim. parte da população, principalmente a segunda geração da terra, aquela que voltava quanto a estação dos calores estivais se apresentava no calendário, queria era tranquilidade. paz e sossego. e, tanto de manhã, como à tardinha, lá tinha uma ligação directa à rádio renascença, que colocava todo o povoado em sobressalto com as orações e os rosários de um país que embora pareça rezar em uníssono, para o fazer resguarda-se no recato dos lares ou dos templos. o mais caricato era, como nessa tarde presenciámos, quando a emissora católica mudava de f e da fé passava, inadvertidamente, ao futebol. era todo o vale que se eriçava com uma "Bola Branca" assistindo às inflamadas descrições das peripécias do pontapé na bola. o autor da denúncia estava à nossa espera à porta da povoação. e logo percebemos que a história era muito mais grave. o padre era acusado também de umas questões pouco claras com dinheiros da paróquia. questões pouco claras porque nem o eram na boca dos seus acusadores. que a certa altura se percebia que eram liderados por um filho da terra que tinha, a dado momento, começado a fermentar contra o padre um daqueles ódios que nestas terras pequenas assumem por vezes porporções desmedidas. uma das acusações era a de ter desprezado a casa que o povo lhe construira, para, por puro desprezo, se ir enfiar numa casa quase ao lado. era preciso ouvir o padre. ele estava na Igreja, disseram-nos. quando fomos ter com ele, estava dentro do carro, deve lhe ter passado pela cabeça algo, que era o nicky lauda, ou alguém do género. dá uma valente guinada, e acelera, rasgando o pó da estrada, passando em alta velocidade pela ana margarida que é obrigada a dar um salto para o lado. depois de passar por nós a alta velocidade vai, em direcção à sua casa. foi a partir daí que o odacir começou a gostar mais da história. corremos todos para o carro e vamos em perseguição ao padre, com a adrenalina a subir na mesma porporção da pergunta, o que é que se está aqui a passar, caramba, é com esta idade que este tipo quer brincar aos rallyes? o padre esconde-se em casa. entramos pelo quintal e batemos à porta. está aberta, um reposteiro espanta moscas é a única fronteira. do lado de dentro a voz da fiel serviçal do padre. "- O Sr. Padre não está. "- Nós vimos o Sr. Padre entrar. Queriamos falar com ele sobre...- diz a Ana Margarida Matos. "- O Sr. Padre diz que não fala com jornalistas. - Mas nós queriamos fazer-lhe umas perguntas sobre a aparelhagem colocada na Igreja. Ouve-se um sussurar, um falar ao ouvido e a mulher, do interior da cozinha continua a fazer.nos frente: - O Sr. Padre diz que não tem nada a dizer sobre nenhum assunto. - Podia pedir ao Sr. Padre para chegar aqui, por favor? - insiste a jornalista. Nessa altura, pelas frestas do cortinado, percebemos que o Padre se aproximou da empregada, para lhe dar instruções mais promenorizadas, ficando assim vísivel. Ana Margarida M. abre o reposteiro e diz: - Senhor Padre, podemos entrar para falar só uns minutos consigo?. - O padre, em presença, não tem coragem para dizer que não. Avançamos, não fomos convidados, mas quem cala consente. Odacir tem a luz da câmera ligada, claro. o padre percebe que ela está ligada e recusa-se a ser filmado. desligamos a câmera. "atira-nos" para cima com o livro da santa concordata, explicando que não está a fazer nada de mal, que aquele calhamaço lhe fornece o direito bastante de ir atender as almas que vão de manhã e à tarde para os campos e que só faz isso por dever de "pastor do rebanho". foram elas que lhe pediram, para não terem que subir à igreja interrompendo o amanho das terras. lê-nos, com voz trémula e cansada, um parágrafo da concordata, acompanhando-o com uma passagem da Bíblia. ana margarida matos percebe que não lhe basta falar com o padre. tem de gravar o seu depoimento, a sede de contraditório da sua reportagem. e consegue explicar isso tão bem, que este deixa de implicar com a máquina do Odacir e anui. mas quer falar na Igreja. Combinamos então o encontro e dirigimo-nos à igreja. de todo o lado começam a chegar pessoas. os fiéis do padre que nos quer mostrar que não tem só detractores na comunidade. está um calor intenso na Igreja repleta. mandam-nos chamar à sacristia, o Sr. Padre está pronto para falar connosco. quando entramos está a colocar os paramêntos. mostrando-nos claramente que a entrevista tem um fim e que lá fora as pessoas esperam por esse fim para ele poder dar inicio à celebração do Senhor. a entrevista começa. o padre vai respondendo ao interrogatório cerrado que a ana margarida matos lhe faz. está acompanhado pelo seu irmão. que nos explica que ele tem uma doença muito grave. o tremor violento nas suas mãos, nos seus olhos, na sua própria pele conta o resto. o padre parece que vai sucumbir à nossa frente. olho para o Odacir, ele está tenso. eu estou mesmo atrás da ana margarida e coloco os óculos. vêm-me as lágrimas aos olhos. por razões outras. o meu pai também fora padre, devia ter a mesma idade deste padre e tinha, há um mês, descoberto que tinha um cancro, fulminante. coisas estranhas à história, claro. mas que me assaltavam quando víamos a terrivel humanidade e fragilidade daquele homem. a jornalista não desiste, o padre parece ir esparramar-se no chão mas por alguma razão ana margarida matos é uma grande jornalista. ela não quer ter a sua opinião do padre. quer, na medida da possível lealdade da máquina ao acontecimento, à realidade, devolver o exacto do testemunho daquele homem. Insiste, pergunta-lhe pela casa que ele desprezou. construindo uma casa ao lado. ainda bem que ela fez aquela pergunta. o padre responde que estava muito agradecido ao povo, que não era desprezo, que lhe tinham construido umas escadas muito ingremes ( e eram de facto, nós próprios o tinhamos comentado quando lá tinhamos ido) e que ele tinha caído lá uma vez e ganhara medo, um medo terrível. mas que não desprezava a casa, era muito bonita, só que aquelas escadas são muito perigosas, ele também era diabético. não teve coragem de dizer isso às pessoas, elas tinham sido tão voluntariosas. é evidente que só o paralelismo entre a situação do padre e a do meu próprio pai me levou para a dramatização desta situação. mas foi ela que me permitiu perceber o real valor daquela máquina que o odacir transportava. quando conjugada com a intuição de uma verdadeira jornalista. no decorrer da entrevista eu estava mesmo atrás da ana margarida matos e várias vezes pensei " ana margarida, chega. tem piedade deste homem. acabou-se, vamos embora". mas só quando ele respondeu a esta última pergunta é que eu percebi que a verdadeira violência seria não ter captado a fragilidade e a humanidade daquele que até aí, parecia apenas um homem respigando aqueles laivos de despotismo com que a igreja católica, na sua anacrónica presença na nosso tempo, tantas vezes vai maltratando o nosso tempo. e quando terminámos a entrevista e saímos, passando por aquela pequena multidão que nos olhava num misto de pavor e desprezo, é que sentimos, todos, uma estranha recompensa.

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