quinta-feira, agosto 07, 2003

este que se me revelou segredo...

[rima fácil com degredo. ] estava eu a aventurar-me para pensar sobre um segredo que partilha comigo os meus dias e lembrei-me destoutro. o ano passado, tinhamos ido a Valência, mais concretamente a Valdigna, a um encontro que, com alguma regularidade, sob o tema da escrita teatral, tem vindo a juntar autores mediterrânicos. na grupo de portugueses estava uma escritora que tem episódicas incursões no teatro. já a tinha tentado entrevistar há uns anos. atirara-me sempre para o encenador, nunca insisti, a reserva fica bem em qualquer alma e nesta, parecia ainda mais apropriada. fiquei a seu lado no avião. ela, como eu e o outro dramaturgo que nos acompanhava, não tendo especial fobia de aviões, não morremos de amores por este sonho de ícaro. especialmente depois desta neurose colectiva que se apoderou de nós a 11 de setembro. talvez por isso, ela falava, falava. a certa altura, deixou cair uma referência à sua terra natal. que por acaso era vizinha da minha. quando vou a puxar o novelo do seu discurso, até porque senti que ela podia ter sido aluna do meu pai, nada. voltei a puxar, mas nada. respondeu-me com aquela delicadeza com que faz parte de nós. que tinha sido uma distracção, não queria voltar ao assunto. tive de mudar o rumo à conversa. que fluiu como os rios, fluiem. todos nós temos portas de acesso reservado. não há nenhum problema nisso. a única coisa que me intrigava, era a razão de ser desta exacta porta. só o compreendi uns dias mais tarde, quando regressávamos os três de valência. tinhamos ido deixar as malas na estação de combóios, para podermos passear um pouco por Valência. num ápice, sem se dar conta, ela é assaltada. algum dinheiro, os cartões, a identificação, tudo o que precisava para fazer tranquilamente o check-in de regresso. aquelas duas horas e meia de tranquilo desfrutar valenciano, transformaram-se numa angustiante estada nos bancos da polícia. o dinheiro, os cartões, não mereciam lágrimas nenhumas, um telefonema para portugal tratara de encaminhar os procedimentos habituais nestas situações, mas queriamos ter a certeza de que não haveria problemas no embarque, por mais que a escritora em causa seja uma figura pública, num balcão da spanair todos nós apenas poderíamos ter como adquirido que fazíamos parte do número dos vivos. quando avançamos para a secretária do oficial de dia, houve que preencher a identificação. aquelas coisas banais. nome de pai. nome de mãe. o polícia era um galego que, como todos os galegos, sentiu logo ali aquele impulso de demonstar como estava familiarizado com a nossa cultura. foi por isso ele que preencheu a folha. na altura de dizer o nome dos pais, ela antecipou-se, tirou-lhe a folha da mão e escreveu donde era e de quem era. mas ele não compreendeu a razão deste seu gesto e repetiu, em voz alta, os nomes da sua criação. nunca me esquecerei da forma como ela baixou ligeiramente a face e olhando para mim, admitiu: "- Já sabes um segredo meu!" [ há uns meses o correio trouxe-me um livro de poemas, dela. poemário sobre um amor exacto, assim revelado, na sua impúdica publicidade. um deles, na sua beleza tão arcaica, é de um erotismo tão contido, mas simultaneamente tão perto de carne, que eu cheguei a baixar a cara, para o chão, com pudor, como se os dois amantes estivessem a dois passos de mim, a um canto da sala onde o poema se decifra."-Já sabes um segredo meu!". Disse ela, quando o polícia galego repetiu aqueles nomes que a terra saloia replica com frequência. Mas são o seu segredo. E talvez esta especulação seja absurda, mas ao lembrar-me deste segredo eu sinto o fascismo como bestiário enorme, perpetuando-se na vida daqueles que, abusivamente, habitou. Sentença, castigo, maldição, fardo que é ao mesmo tempo, antídoto, purificação do ar que respiramos. É uma intuição, claro, e é de mim que intuio, que a besta só tornará quando se extinguirem os corpos daqueles que, contrafeitos, o habitaram.]

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