quarta-feira, setembro 17, 2003
Ingrid Betancourt
Natureza do Mal começou a falar de Ingrid Betancourt para estancar a ameaça de morte que paira sobre a sua cabeça. Sobre a nossa cabeça. Não acredito nessa história cor-de-rosa de que não morramos com a morte dos outros. Aos 18 anos o meu pai ofereceu-me um livro, de Jean Paul Sarte. Chamava-se "Com a morte na Alma". Tinha lá dentro uma dedicatória, uma porta. "Para o Quim ler e reflectir comigo". É por essas portas que eu tantas vezes entrei e saí quando a realidade se chateava comigo. Ou eu com ela. Continuamos vivos mas de morte nos enrijecemos.
Continuo a falar de Ingrid Betancourt. E é em Bogotá que estou, naquele prédio onde já prometi a mim mesmo morar quando deus ou aquele cabrão que em vez dele nomeio fizer de mim um homem-gato. Não preciso de sete, apenas duas vidas. Com uma velarei o sono do meu filho, com a outra partirei sem rasto, sem nome. E sei, abrigar-me-ei naquele prédio em Bogotá onde a Paleta e o Raul vivem. Eles também falarão de Ingrid Betancourt e assim, o engrossar da voz chegará a algum lado.
Eles também falarão de Ingrid Betancourt. Só que com mais propriedade. A Paleta já me manda textos escritos em Espanhol. Foi para lá trabalhar na Unesco, a fazer a ligação com as ONGs que trabalham com as populações. Psicóloga, especializou-se em musicoterapia e de repente tinhamos todos um recado para uma festa de despedida, ela ía procurar entre o som da metralha, das granadas, das bombas, a música que tira os pecados do mundo. Voltou, apenas para preparar a ida, e agora eu sei que possivelmente será para sempre. O daquele lado do mundo é um campo aberto aos sentidos, às emoções, à ideia de rebentarmos, de arrancarmos as cordas que se nos prendem à garganta. A Colômbia não é só Bogotá nem o estridente da morte, de tempos a tempos recebemos imagens de lagos repletos de uma cor descomunal, fora do mundo, de montanhas indescritiveis, de veredas onde o de lá começa a ser intangível do lado de cá. Houve uma altura em que inventou umas circulares que corria por correio electrónico, partilhando as histórias, o dia a dia. Ela também escrevia, escreve contra a morte e quanto mais o percebe, mais escreve. No outro dia prometi-lhe um blogue. Aliás, para ser exacto, foi ela a primeira a falar-me de Ingrid Betancourt.
Nunca deixaremos de falar de Ingrid Betancourt. Tenho na minha imagem alguém, homem ou mulher sentado numa cadeira a falar, a falar interminavelmente sabendo que quando parasse de falar morria. Não sei onde a fui buscar, se a li, se me contaram, se fui eu que a inventei num desses esboços que se assentam para um dia escrever um texto, uma peça. E esta ideia de falarmos contra a morte de Ingrid Betancourt parece-me a concretização desse esquisso, desse esboço, dessa ideia, provavelmente nocturna. Imagino um palco, é instintivo em mim, sempre que me acode o poema vejo um estrado de madeira de carvalho e um fundo negro, escuro a destacar o que lá lhe ocorre. Um palco imenso, neste caso. O velho palco mundial. Vejo milhares, milhões, biliões de pessoas a falaram, a escreverem, uns com palavras, outros na mingua delas, contra as mesmas, palração incontida, automática, e a fazerem disso libelo contra a morte, chamemos-lhe agora assim, contra a morte de Ingrid Betancourt, não há aqui imagem, apenas um nome, Ingrid Betancourt, outro nome que se esconde e se revela na tensão que acolheu este, a morte, a D. Morte como lhe chamava a Ti Miséria, a morte inexplicável do universo, das coisas, dos seres, de tudo o que mexe, que acorda, que se sobressalta, que sacode o saco do mundo, o meu, o teu, o nosso, o do futuro, cabrões de vindouros, sempre a merda do futuro...
[ também, como provavelmente outros, o Luís de Sublinhar, já tinha aqui, falado de Ingrid Betancourt]
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