terça-feira, setembro 16, 2003
"Um herói de uma certa ideia de nação"
Em Flor de Obsessão encontro este fragmento sobre a homenagem a Maggiolo Gouveia: "Mas faço três comentários: primeiro, que a homenagem a Maggiolo Gouveia tem uma justiça intrínseca que não é necessário explicar; segundo, que há nessa justiça uma compreensível componente política porque Maggiolo representa um Portugal consciencioso e certo que não desistiu diante do caos; terceiro, que convém olhar para tudo isto sem insistir, em permanência, na mesma ladainha anti-Paulo Portas."
O atraso com que, e mesmo assim indirectamente, me refiro a este caso é indicador desde já da minha má vontade ao fazê-lo.
[Até porque a minha memória desta situação está muito ligada ao papel que nela teve um amigo de família, na altura bispo resignatário de Dili, recentemente falecido, por quem, para além de nutrir uma amizade fortalecida por constantes discussões de natureza política, tenho uma dívida de gratidão enorme.]
Mas confesso, ficou-me a ressoar cá dentro esta ideia de que " há nessa justiça uma compreensível componente política porque Maggiolo representa um Portugal consciencioso e certo que não desistiu diante do caos". É verdade, expurgando a a adjectivação, é verdade que Maggiolo é um simbolo de um determinado Portugal que se revê na ideia de não ter desistido diante do caos (comunista). Creio que foi Ana Sá Lopes, no Público, que terá dito a frase certeira, e cito de memória: "Maggiolo não será o herói da nação, apenas da sua ideia de nação".
Quem se recorda do semanário "O Tempo", de Nuno Rocha, "O Diabo", e depois "O Sol", de Vera Lagoa, e de como estes jornais fizeram de Maggiolo uma bandeira, sabe bem não só que Portugal era este como a situação política em que estas vozes obtiveram amplificação política e social. E também saberá que, neste contexto, a fractura era exposta e do outro lado da barricada, outras bandeiras, outros simbolos eram mobilizados para a contenda. Era um Portugal a vermelho e negro, todos o sabemos.
Mal ou bem, não foi esse modelo de Portugal que triunfou. É entre o rosa e o laranja que hoje se aglomeram as grandes manchas da opinião expressa democraticamente. Podemos lamentar o grande centrão, e talvez nunca o lamentemos em excesso, mas a verdade das urnas não deixa espaço para dúvidas de que esta aglomeração fez com que os extremos se esvaziassem e perdessem espaço de manobra política e mediática.
Mesmo assim essas ideias de Portugal que, com nostalgia ou furibundo anacronismo, se projectam ora na convicção de que não desistiram diante do caos , ora na exaltação desse caos, sendo claramente, na sua expressão politica, ideias minoritárias e em perda, habitam ainda, como um espectro fantasmagórico, num número de pessoas que é muito maior do que aqueles que, conscientemente, delas não se apartaram.
É que a prática democrática distingue-se pela criação de dispositivos de regulação do caos que levam à gradual interiorização daquele ódio e daquela violência politica e social cuja expressão é o húmus dos diferentes discursos radicais em torno do caos e da ordem. Por isso nada neste revisionismo histórico apressado é compreensível, e muito menos tolerável. Ele instalou, no discurso de um Estado democrático, e contra a corrente do resultado da vontade expressa, uma deriva do ódio e da violência que temos vindo, há mais de duas dezenas de anos, a trabalhar colectiva e individualmente.
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