quinta-feira, outubro 23, 2003
Exílio, cá dentro...
Desde 92, com um pequeno interregno, uma ou duas vezes por ano, calha-me um exílio para uma terra de ninguém, esse lugar (o jogo dramático) que, como o defeniu Jean Pierre Ryngaert (na entrevista que lhe fiz em 86, publicada no DN Jovem) é um espaço entre o real e o imaginário, que nem é do mundo nem é fora dele, onde podemos com relativa liberdade experimentar, reflectir e criar, investindo na descoberta pessoal dos jogadores . É a disciplina de Criatividade e Espontaneidade (nome que deve ser entendido antes de tudo como um tributo ao contributo de Moreno para as práticas educativas), na Escola Superior de Enfermagem Calouste Gulbenkian. Disciplina que até 1999 se propunha realizar uma intersecção entre a actividade do enfermeiro e a prática de animação sócio cultural, e que, a partir dessa data, começou a explorar de uma forma mais incisiva o processo de criação da personagem ( enquanto vivência de descoberta do Outro).
Assim, duas vezes por ano, cerca de vinte pessoas, incluindo eu próprio, embarcamos numa aventura. Uma aventura onde, como em todas as experiências em pedagogia, há um grande investimento na defenição do ponto de partida e chegada, dos instrumentos de navegação, para que estas vinte e sete horas em que estejamos juntos possam ser um verdadeiro ponto de interrogação, um campo aberto às nossas emoções, às nossas intuições, aos nossos desejos, às nossas formas de trazermos o mundo pela mão.
O facto de estar simultaneamente a alimentar este Respirar será não um obstáculo, uma luta contra o tempo, espero, mas um poder sentar-me sobre a experiência. Sinto isso como um privilégio. Aliás, escrever será sempre isso. A tensão entre este privilégio que é poder fazê-lo e a dor, o reconhecimento de todos aqueles universos que nascem, vivem e morrem sem conseguirem o seu instante de luz, e de escuridão, aquele instante de luz e trevas que a expressão de si próprio conquista para cada um.
Privilégio múltiplo, quase orgástico. O de de poder escrever(ter a oportunidade, a motivação e o meio) , o de poder escrever sobre algo que merece o confronto com a luz e sombra, o de ter alguns de vós a seguirem este percurso, e eu confesso que não sei para onde, e o de, por exclusão de partes, ter de excusar a minha atenção a este circo romano em que transformámos a nossa vida dos últimos tempos.
Entregue ao espantoso principio de realidade que emerge destas vinte e poucas personagens de ficção que irão acabar o seu percurso nos jardins circundantes da escola, ausentarei este espaço daqueles cada vez mais numerosos personagens reais amarrados, aprisionados a uma ficção que é geneticamente diferente daquela que "tira os pecados do mundo" ( já agora, valerá a pena os ficcionistas deste reino proporem um selo de qualidade biológica para a ficção, uma espécie de região demarcada do imaginário?).
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