sexta-feira, outubro 17, 2003

filosofia em 2ª mão & teatro : notas soltas (I)

Termina assim o contador da história de "Tristão e o Aspecto da Flor", primeira peça do livro de francisco luís parreira, agora lançado pela errata, em que este justifica porque escreve : " - Dantes era para mudar o mundo. - E agora? - Agora é para que o mundo não me mude a mim." este fragmento surgiu na discussão, alguém, citando-o, interrogou o escritor pedindo-lhe para explicar essa passagem da escrita enquanto voz de uma utopia transformadora, para a sua reformulação, a partir de um lugar do indíviduo em que este já só reconhece como possível transformar-se a ele mesmo. vou à procura do fragmento e leio-o de outra forma. o contador da história agora ( um agora no tempo diegético) não escreve para se mudar a ele próprio, sim para não se mudar. o que mudou foi a forma do homem tomar consciência do acto que é, em si, escrever. num primeiro momento quase todos nós nos entregamos à utopia de que podemos mudar o mundo escrevendo. nem teria sentido escrever se as primeiras palavras não tivessem esse fulgor (outros diriam acne) encrostado na face da nossa escrita. somos putos loiros com merda na face, como escreveu alguém um dia, penso que foi a celeste craveiro, não garanto, não importa (pois não, celeste?). e depois vem um momento em que caímos em nós. alguns ainda passam pelo "escrevo para me mudar a mim e mudando-me, mudo o que em mim no mundo se mantém acessível ao meu gesto transformador". mas a maior parte de nós talvez se aperceba de uma outra condição da escrita, tão verdadeira como a revolucionária de que tanto nos regozijámos: a de que a escrita, enquanto processo de fixação tem uma inequívoca dimensão de utensílio de poder (Claude Levy Srauss conta sobre isso um episódio da introdução da escrita numa comunidade primitiva), de conservação do mundo, de estabilização. estagnação. denegação da mudança. e não quer dizer que a escrita seja uma ou outra. provavelmente será a crise que existe entre a palavra que ainda não existe e a palavra já escrita. a tensão entre a afonia e o som que ao vazio acorre. porque a escrita é um gesto, e enquanto gesto é algo em movimento. falava-se aqui no outro dia da invenção de um modo singular de escrever, a lápis, com uma borracha estrategicamente colocado no dedo para ir apagando o percurso das palavras, era uma escrita sem rasto, escrevia ele. e há algo de incrivelmente verdadeiro e justo nesta ideia, porque a escrita não tem rasto, tem o momento em que ocorre, em que acorre.

1 comentário:

Anónimo disse...

Celeste Craveiro conheci em tempos, perdemos contacto.