sábado, novembro 22, 2003
Coimbra é uma lição...
Não estava para me virar para este lado, e possivelmente não o farei da melhor forma. Não estou numa zona de grande clareza. Ainda há pouco tempo quando dei as minhas aulas me apercebi dessa incomodidade. Tenho-me contentado em poder encontrar às vezes algo que se aproxime daquilo que eu lá vou destapando como uma ideia mais encorpada.
Mas tudo em mim ainda muito vago, muito achismo para meu gosto. Há pouco aqui comecei a ler um texto sobre cadeados. A minha opinião face ao que lia parecia um daqueles gráficos em que se regista um grande intervalo de valores. O que não me permitia concluir nada. É claro que eu acho um exagero alguém espantar-se que um constitucionalista, mesmo que seja o Vital Moreira, se indigne perante uma prática que ele entende ferida de razão e legalidade.
Sobre cadeados, mantenho-os em suspensão, continuando a seguir o trajecto do texto do Luís. Concordo em absoluto com ele em relação a algo que nos esquecemos vezes demais quando há greves, boicotes, cadeados, e toda a parafernália da actividade oposicionista e contestatária: o seu valor é exactamente esse, o de fazer suspender o livre curso dos dias e o de colocar em causa a normalidade dos nossos dias.
Quando por exemplo os trabalhadores do metro, da carris, das rodoviárias, da cp, fazem greve, estão a provocar um efeito de uma terrível violência sobre a vida de cada um de nós. Não é agradável para ninguém ter de vir a pé para o trabalho, ou sujeitar-se a longas filas, geralmente no meio de um trânsito congestionado. A greve é uma prática violenta de interrupção da vida quotidiana e por isso, geneticamente em contra-corrente ao espirito da vida democrática.
Não parecerá um contra-senso? Se a greve é uma prática violenta como é que ela pode ser um recurso constitucionalmente disponível? Sendo que daí resulta que todos nós - ou a ideia que todos nós aceitamos que se faça de todos nós - queremos viver numa vida social que possa ser interrompida em determinados momentos e salvaguardando certas condições excepcionais.
E para quê? Porquê? Porque é que eu que não sou médico me congratulo com uma greve dos médicos que me prejudica no meu interesse privado e aparentemente só beneficia o interesse privado dos mesmos? E o mesmo se poderia dizer dos carteiros, dos motoristas, dos nadadores salvadores, dos actores, e por aí em diante. Em primeiro lugar porque convencionámos que é a favor do interesse geral a tentativa de harmonização dos interesses particulares. E sendo assim, eu acredito que viveremos melhor se os nossos interesses estiverem conjugados. Depois eu confio, e a prática democrática assenta na confiança. Eu confio que o nadador salvador, o motorista, o carteiro, só me obrigará a interromper a actividade quotidiana se isso for imprescindível. Ele poderá também contar comigo nesse aspecto.
Em segundo lugar estas ilhas de violência são lugares democráticos na medida em que permitem questionar a qualidade da prática democrática das democracias que instituimos. Não só de violência ruiem as democracias. Também de marasmo. De comodismo. De egoísmo. De laxismo. Uma das razões porque é justo pensar que no momento da invenção democrática o homem estava tão profundamente inspirado que porventura não estaria em si, é esta capacidade ambivalente da práxis democrática em constituir-se antídoto para a violência e para a dormência. O que melhor fez o homem foi o institucionalizar a suspeita sobre si próprio. O de consagrar a possibilidade de se colocar na pele do outro, o outro que será, à vez, ele próprio. Numa greve dos carteiros todos somos carteiros. E seremos todos padeiros quando a panificação pontualmente fechar. O duplo jogo da representação é uma das poucos motivos de esperança que poderemos ter na nossa sobrevivência social. Somos estes que aceitamos ser representados por individuos a quem atribuimos cada vez menos importância e somos estoutros que nos colocamos num lugar que não seria, em principio, o nosso.
Voltemos aos cadeados, dos quais também não gosto. A mim parece-me que é empobrecedor de uma ideia de Universidade, principalmente se for uma Universidade em luta, que não se possa entrar nela. Imagino uma Universidade em luta transpirando discussão, debate, reflexão e informação em cada poro. Não conheço Coimbra e não sei como estará neste momento. Talvez tenha acabado de escrever grosso disparate. Talvez os portões estejam fechados mas a Universidade tenha transbordado para a Cidade. E além do mais, quem sou eu, que não sou estudante, para discutir estratégia e eficácia de uma luta da qual estou cada vez mais afastado. Não, não o farei. O máximo que posso fazer, e a isso sim, não me escudo, é dizer que estes portões fechados não me aproximaram desta luta.
Por outro lado, e aqui mais uma vez entro no terreno da pura especulação, gostaria que tu também te pronunciasses, a questão não é saber se uma direcção associativa que foi eleita apenas por 2% pode tomar uma iniciativa que também impede os outros 98% de entrarem. A questão que me parece mais complexa é se não é por este problema de representação, que este tipo de medida foi tomada. Nem estou a perguntar se isso é uma razão directa. Pelo contrário, o que acho mais preocupante é se este tipo de opção que é bastante mediática e mediatizável - ou seja, se não houver incidentes ela significará que toda a Universidade pára sem que nunca se saiba, principalmente os dirigentes e os próprios estudantes quem é quem e quantos são nesta luta - não surge por isso mesmo.
Tudo isto não quer dizer que pense que os cadeados devem ser retirados pelas forças policiais. O que penso é que Coimbra, mesmo com as portas fechadas, é de facto uma lição.
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