quarta-feira, novembro 05, 2003

Instante de fúria

Anteontem quando saí das aulas fui até ao meu centro de saúde. Para se chegar lá tem de se atravessar o hospital júlio de matos de uma ponta à outra. Aquele ambiente, o estado calamitoso em que se encontram os meus bronquios nos últimos dias, aquela irritação perante aquele suícidio escrupuloso que é fumar todas as horas, todos os dias, todos os anos, fizeram com que num repente levasse as mãos ao bolso e arrancasse a embalagem de amsterdam e o atirasse violentamente para o ar, projectando-o no vazio da minha fúria. Eu sei, não é pc atirar coisas para o chão, os filtros e as mortalhas já foram direitos ao caixote do lixo, embora agora me pergunte se não deva apenas lamentar aqueles que foram para o caixote, não sei se os doentes do júlio de matos que são fumadores vão ter de capacidade de reconstituir o tortuoso do meu gesto. e a onçazinha de amsterdam sem as mortalhas e os filtros não sabe tão bem. digo isso por experiência própria claro. A minha história com o fumo tem quase trinta anos. Não sei se vou ultrapassar esta batalha. É claro que isto para os blogues não tem importância nenhuma. Nos blogues não há necessidade de espaço reservado para fumadores. Mesmo para os físicos, ou phisicos, esta existência virtual não terá só inconvenientes. Portanto se eu fumo ou se não fumo, aqui, não aquece nem arrefece. Mas agora, que há dois dias acordo para o dia e não me apresso a fingir um pequeno almoço para poder fumar um cigarro, a minha vida pelo menos, ao levantar tem outra esperança. Anteontem, depois daquele gesto furioso, umas horas depois, fui buscar um cigarro à mala da minha mulher. Fui ao quintal, dei três ou quatro fumaças, certifiquei-me que tinha ganho um novo ódio na minha vida. Fui para dentro e adormeci em paz. Ontem fumei um cigarro, era aí umas quatro horas. Também as mesmas cinco ou seis fumaças. Às dez e meia da noite, na Eterno Retorno, combinávamos a ida para o Salão do Livro Teatral em Madrid, o nervoso miudinho da preparação das coisas fez-me pedir um cigarro ao A. Torrado. Descobri outra faceta de mim: não só para os amores, também para os ódios, tenho de os ter ali, à mão de semear. O truque do Abel Neves está a funcionar perfeitamente: garrafa de litro de água ao meu lado, sempre que se me assola a ideia de fumar, cá vai nascente de água mineral natural. e só pelo brilho que me assola aos meus olhos por pensar que o ar que respiro vai ser de novo meu, vale a pena esta luta contra invisíveis, e pulguentos, demónios.

Sem comentários: