sexta-feira, dezembro 26, 2003
"Não calemos o que deve ser dito. Nem nada do resto. Falemos, falemos sempre. Os nossos mortos aproveitam-se dos silêncios para aparecer", diz o Luís. Grande parte da minha vida passei-a na ilusão de lutar contra o silenciamento. "Queres dobrar este silêncio em dois?", era a minha senha, a minha sanha. Ainda me lembro das palavras de Marques Arede na Sala Vermelha do Casarão Cor de Rosa: "Recuso calar-me perante o silêncio da história".
"Recuso calar-me perante o silêncio da história".
Falemos então, falemos sempre. Nunca falaremos de mais. Mesmo que não seja verdade, Luís. O que os nossos mortos temem são os nossos silêncios. O que eles aproveitam é esse "truoar maldito que é este tempo de me encontra fugindo ou de fugir de me encontrar".
Ainda no registo do silêncio: viro as páginas de uma entrevista de Pedro Dias de Almeida a Marcel Marceau e não posso deixar de sorrir pela agressividade com que Marceau responde ao Pedro quando este lhe pergunta se não se sente fora do seu meio quando tem de dar uma entrevista.
E eu lembro-me de uns onze anos atrás, estávamos em Julho de 1992, no Teatro Rivoli, no 1º Congresso Mundial de Teatro e Educação, resolvi entrevistar Jacques Lecoq que tinha vindo ao nosso Congresso. Jacques Lecoq, tal como Marcel Marceau, gostava de falar do seu trabalho ( Lecoq tinha também grandes responsabilidades pedagógicas). A entrevista começou de uma forma violentíssima. Tinha-lhe feito uma pergunta sobre o Teatro/Educação, aproveitando o facto de ele próprio ser um pedagogo e de ter vindo dar uma aula pública e ele recusou terminantemente responder a essa pergunta, que pensava que íamos falar sobre o seu trabalho, não sobre o Congresso. Pediu um tradutor. Que não gravasse sem termos resolvido o assunto. Eu estava furioso. Tinha passado a manhã toda a ler um catrapázio sobre a Escola Lecoq que me tinha emprestado o actor e encenador João Ricardo, apenas porque achava rídiculo que um artista e pedagogo como Lecoq viesse pela primeira vez a Portugal e ninguém o entrevistasse. Contra o silenciamento, mais uma vez, lá investi nesta tarefa, estava também na organização e quem soube do que se tratou sabe que tinhamos uma equipa mínima de mais ou menos dez pessoas para todo o Congresso. Virei-me para ele e disse-lhe: "- Não precisamos de nenhum tradutor. É tudo muito simples. Você não quer responder à entrevista que eu lhe quero fazer e eu não lhe quero fazer a entrevista que você quer que eu lhe faça. Acabou-se aqui a entrevista." Desliguei o gravador e, a tensão desanuviou-se. Continuámos a falar e eu comecei-lhe a fazer a entrevista que realmente tinha pensado fazer-lhe mesmo correndo o risco de perder tudo. A certa altura, já tinha passado seguramente mais de vinte minutos de conversa, e curiosamente através de um daqueles silêncios em que, segundo o Luís, os mortos estão à espreita, ele percebe que está a dizer algo que é importante. E eu só lhe digo: "Isto eu tenho que gravar" e ligo o aparelho. Cinquenta minutos depois desliguei-o, estava terminada a entrevista.
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