quarta-feira, dezembro 03, 2003

Para acabar de vez com a Cultura... (Bolsas de criação Artística 5)

Ao seguir a discussão sobre bolsas literárias em quartzo-feldspato_mica, encontro duas posições que me merecem aplauso. Uma, muito mais dirigida a esta conversa, a de Manuel Rezende , outra, indirecta mas não menos estrategicamente colocada para servir este debate, de Adrianne Rich, através da estimulante tradução (inédita) de Margarida Vale de Gato, e cujos excertos mais contundentes e assertivos (os sublinhados são meus) sobre esta magna questão não resisto a trazer aqui: "Eu sei que lês este poema já tarde, antes de saíres do escritório com o único foco de luz intenso, amarelo, na janela escurecida na lassidão de um edifício esbatido no silêncio muito para lá da hora de ponta. Eu sei que lês este poema de pé numa livraria longe do oceanonum dia cinzento do começo da Primavera, flocos ténues levados através dos amplos espaços das planícies em teu redor. Eu sei que lês este poema num quarto em que aconteceu mais do que podias suportar em que as roupas da cama jazem em rodilhas estagnadas sobre a cama e a mala aberta fala em fugir mas tu não podes ainda partir. Eu sei que lês este poema enquanto o metropolitano abranda e antes de subires as escadas a correr em direcção a um novo tipo de amor que a tua vida nunca permitiu.Eu sei que lês este poema à luz do ecrã da televisão onde imagens sem som se agitam e deslizam enquanto aguardas o comunicado da intifada. Eu sei que lês este poema numa sala de espera de olhares que convergem inconvenientes, de identidade com estranhos. Eu sei que lês este poema a uma luz fluorescente no aborrecimento e fadiga dos jovens que são deixados de fora, que se deixam de fora, muito cedo na vida. Eu sei que lês este poema com a vista que te falha, as lentes espessas ampliando estas letras para lá de todo o significado mas continuas a ler porque até o alfabeto é precioso. Eu sei que lês este poema patrulhando o fogão onde aqueces leite, uma criança a chorar-te no ombro, um livro na mão porque a vida é curta e tu tens sede. Eu sei que lês este poema que não é na tua língua pressupondo algumas palavras enquanto outras te prendem à leitura e eu quero saber quais são as palavras. Eu sei que lês este poema à escuta de qualquer coisa, enquanto o azedume e a esperança te espartilham, regressando uma vez mais à tarefa que não podes recusar. Eu sei que lês este poema porque não sobra mais para leraí onde foste aterrar, em pêlo."

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