segunda-feira, janeiro 26, 2004
De quando a política cai em mim...
1. Um comentário do Luís Graça sobre a entrada "Aforismo Político", fez-me cair na minha relação com a política. Não apenas a mais recente, mergulhei num eixo que vai até ao verde da minha infância.
2. A razão porque falo no verde, que é tanto o musgo viçoso dos muros como a terra fresca junto do regato, é porque ele é fundamental para eu me apropriar do sentido da política, já que também aqui, há uma força anímica que se constitui enquanto discurso antes mesmo de chegarmos à fala. E depois, quando a ela, à fala, acedemos, muitas vezes construímos discursos que parecem contradizer esse ânimo..
3. Digo que parecem contradizer. Em primeiro lugar porque este primeiríssimo ânimo é da ordem da matéria, do orgânico, do bio. Sendo o movimento, seja ele qual ele for, tenha ele o sentido que tenha, o primeiro auspício da política em nós, ele habita num nível anterior, o da acção que se reproduz sem comando nosso. É assim preciso um pouco mais do que o discurso para que o discurso da não vida, da não política, ou da anti-vida ou da anti-política, possa constituir-se como negação desse tal ânimo que nos vem do tempo em que ainda não verbalizámos o verbo que em nós já aconteceu. E esse pouco, ou muito mais é da ordem da violência, sabemo-lo.
4. Aqui como num texto anterior, coloco em planos que podem parecer quase opostos, a questão da verbalização e a da intuição. E mais do que isso, de uma forma que pode denotar uma obsessão recente. Tenho alguma esperança de que não seja nenhuma obsessão. E também não será, e isso sei-o ao certo, tão recente em mim. Embora, seja relativamente novo, um ou dois anos, este fastio insuperável pela névoa de mentira, de propaganda. E hoje, o divórcio que sinto com o mundo onde vivo é essencialmente uma fractura que passa ao nível da linguagem. O meu drama pessoal é sentir que apenas o silêncio me pode dar alguma paz individual e que, no entanto, este calar é, face ao odiento da propaganda e da mentira, e ao verdadeiro crime contra a comunidade que elas representam, uma forma de nunca ter paz. Não que me importe. Só que não reconheço, senão momentaneamente, algum sentido nessa luta. Principalmente porque só a sei travar com a linguagem. Choque de linguagem contra a linguagem. E senão me é permitido acreditar nem desesperar, que me seja ao menos acessível ferir a minha expressão com a angústia. Bastar-me-ei, feliz e contente como uma criança, com isso.
5. E se, nem que seja por momentos, desabitarmos este mundo flácido, pastoso e viciante das palavras, apercebemo-nos de uma fonte de energia que antecede a nossa construção da política e que é em si mesma a sua génese. O sem abrigo que dorme na Almirante Reis, sabe-o bem. Se lhe formos perguntar o seu partido ele dir-nos-á, como o Luís Graça, o disse aqui, badarmerda prós políticos, foram eles que me conduziram a este atoleiro. Mas depois, acabámos de virar as costas, dobrar-se-á sobre si mesmo e ajeitará o papel de jornal sobre o cartão, como se uma dobra de lençol de linho fosse, e nesse gesto estará encrostado todo um tratado, se bem que não aristotélico, da política no mundo, nos seres, nas coisas. Para que este tratado se interrompa é preciso um tanto de violência. Que poderá ser a morte, essa violência intrínseca ao movimento. Ou poderá ser a recriação da morte que, através da violência, praticamos com bastante frequência. Seja o que for: não bastará a verbalização da violência.
6. Porque é que esta questão do lugar da linguagem é importante na política? Em primeiro lugar se todo o programa político parece assentar na linguagem, na sua expressão, e se nesta ele atinge um tal modo de sofisticação que torna imperceptível a sua ligação à música, ao batimento cardíaco, a esse lá natural, é importante perceber que o grau zero da política não existe, ou melhor, não existe na linguagem. Eu posso dizer que estou-me ralando para a política, para os políticos, que não sustento chulos, que não voto, e tudo o mais que a minha retórica abstencionista sustentar, mas a verdade é que enquanto eu respirar, eu estou a inscrever-me num movimento diacrónico com este mundo, participando nele, estando disponível para todas as retóricas que saibam captar e conviver com o meu abstencionismo.
7. Parece demodé e pouco prático, falar em fascismo contemporâneo. E não é de facto adequado. Mas se substituirmos fascismo por totalitarismo, apercebemo-nos de como é que a retórica totalitária é a que melhor se adapta, convive, suga e explora a retórica abstencionista. Porque o totalitarismo é um circulo vazio que recai sobre todas as cabeças.
8. Porque o totalitarismo é um circulo vazio que recai sobre todas as cabeças. Até, e isso é um tema insuficientemente explorado, sobre o tirano, quando o havia. No totalitarismo não é só todo o mundo que é obrigado a sujeitar-se ao pensamento do tirano. Foi este o primeiro a abdicar do seu pensamento, encarnando uma suposta voz e pensamento de todos. Muitas vezes, com o destroçar das tiranias, apercebemo-nos, em relação aos tiranos, das suas alcofas, dos seus quartos escuros, das suas mansardas, e aí damo-nos conta de que eles também se escravizaram numa voz que não era a sua.
9. É importante voltarmos a esta ideia de totalitarismo e abstencionismo. Sabendo de antemão que estamos a falar de totalitarismo no viver e de abstencionismo no linguarejar. Ao abstencionismo no viver só acedemos através do fim da respiração. A primeira ideia que tem de ficar clara é de que o totalitarismo entre nós só pode suportar-se na morte, ou na suspensão do pensamento, ou seja, do indíviduo. O totalitarismo, enquanto voz para todos, é voz de ninguém. Sabémo-lo, nem do próprio tirano, quando os totalitarismos mais artesanais necessitavam deles.
10. Totus tu. Creio que era isto que os católicos que foram acolher João Paulo II quando ele veio a Portugal pela primeira vez, tinham nas t-shirts, nos pregões, nas almas. Todos teus. A ideia de totalitarismo, e ao falarmos da ideia de estamos a falar do totalitarismo na linguagem, cumpre-se pela entrega, pela violência, ou pela diluência. E se o todos teus dos manifestantes católicos se realizava na linguagem, o todos teus dos totalitarismos mais arcaicos e artesanais atingia a submissão na linguagem através da tortura e da sevícia, o todos teus dos novos totalitarismos realiza-se numa demissão, numa abdicação que não é expressa pela linguagem. Que recusa a linguagem como forma de expressar a sua individualidade.
11. Atrás escrevi, totalitarismo no viver e abstencionismo no linguarejar, e agora não concordo. Sem tempo de rever, assinalo esta discordância comigo mesmo. Assim, como aqui aparecem, são ambos realizados na linguagem. Se o abstencionismo no viver é o fim da respiração, o totalitarismo no viver será um lugar utópico, onde tudo o que a linguagem pode proferir já está enunciado antes da proferição. Onde a linguagem não é necessária. Ora não se vê, quer dizer, não se avista, que lugar é esse.
(incompleto. os textos que estão incompletos serão colocados numa nova entrada quando concluidos)
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