quarta-feira, janeiro 21, 2004

Mercado das Almas

No outro dia estava a ser julgado pelo meu afecto muito especial pelo B'leza. Era uma conversa muito abstracta, muito generalista, como convém. Ou porque convém. Dizia-me uma amiga, e havia ali dedo em riste escondido, que se encontro alguém é no B'leza. E não sendo verdade, e não sendo de todo verdade, até pela força da realidade que não pode ir agora transmutar-se para cumprir a sentença, há algo de espantosamente verdadeiro e luminoso nela: é que de facto, se procurasse alguém seria no B'leza que o faria. Embora aqui, tenha vindo laboriosa e continuadamente a escrever este aforismo cujo sentido extravaza de longe as minhas melhores noites b'lezianas: "felizmente aquilo que encontro não é aquilo que procuro..." Há na noite b'leziana um segredo que frutifica o próprio mistério que habita a noite, todas as noites. Mas que depois plana, como um condor, sobre a única única noite que desabita um homem, uma mulher, da escuridão que, como uma praga, uma maldição está suspensa sobre as nossas próprias cabeças. Eu sei, estas são palavras-gerais. Naquele palacete onde ecoam as memórias de uma certa noite lisboeta, aquela que se bifurcava à saída do Ritz Club , em direcção quer às noites longas quer ao lontra, ouviam-se as vozes de uma ideia de áfrica que, a partir de um número reduzido de acólitos, se espraiou por todos aqueles que como eu, nunca tendo estado em áfrica, se reviram do avesso aos primeiros acordes desse fado chorado, a morna. Sôdade di Futuro, em crioguês, bem poderia traduzir a alquimia que torna possível este encontro naquelas paredes decadentes, enfumadas de um salão de festas colonial. Voltemos ao Mercado das Almas. Traficar almas é sempre iniciativa complexa, errante, indefenida. Alguns chamam-lhe mesmo actividade predadora. Não sei. A lógica do domínio desinteressa-me. Mesmo que um dia venham comprovar-me que as minhas células falam a linguagem das espécies e que nestas a dicotonomia dominar/ser dominado é o principio estruturador de todo o linguarejar, eu espero ter algumas palavras de reserva, livres, indómitas, para, na altura certa, me revoltar contra essa imposição. E para esse tráfico de almas elejem-se lugares santos. Conheci gente que se ajoelhava na Kapital, que rezava convictamente no Kremlin, que se entregava naqueles varandins maravilhosos do Lux. Sacerdotes, acólitos, iniciados, ou meros crentes. De uma religião universal que é esta inquietude, este agitar de alma, este tenho a morte toda para dormir, estou aqui e sou ali, serei agora e sempre, em toda a parte, o teu pequeno deus deste momento, as capelas beatas deste mundo encerraram as suas portas às 21h. A igreja católica que é tão estúpida como aquele céu onde se abriga, onde se esconde, onde se revela, devia abrir-se ao mundo, abrir lojas de conveniência 24h sobre 24h, vem até mim e serás salvo, esta é a casa do senhor, não, a partir da meia noite só os lugares pérfidos, vem-te em mim, que se f. a salvação, digam o que disserem há uma pacto de tortesilhas assinado entre deus e o diabo, por iniciativa deste, e desmazelo do outro, claro...poderia ser só isto mas não é, nem seria bastante. Insisto na questão da comunicação. Da forma como falamos daquilo a que não conseguimos aceder pela linguagem: se os três esses ( sexo, solidão, sacanagem e solilóquio ) fossem a única forma de justificar todos os circuitos, todos os itinerários, todas as deambulações, a noite já teria morrido há muito. Também de onanimismo. Poderemos tentar exprimi-lo. E talvez algures a poesia o tenha conseguido. A mim agrada-me a ideia de que há uma elaboração do poema nos passos nocturnos, no som da sola contra a calçada, da pele contra o soalho. Ou melhor, que é aí que o poema se elabora. Não sei assim o que é que um lugar precisa para constituir a sua santidade, mas sei que o B'leza é esse meu lugar. É um lugar como outro qualquer. Mas é o meu lugar. E mesmo sabendo que no esgotar das horas nocturnas há uma sábia felicidade " em aquilo que encontro não ser aquilo que procuro", voltarei também de novo à ideia de que, independentemente da alma que encontre, o que me define, o que me faz gente, é a natureza e qualidade da(s) alma(s) que procuro. E essas, sei-o de antemão, são varridas por esse mesmo zénite, 30 graus de longitude, ali, entre a D. Carlos I e a Calçada Marquês de Abrantes. (incompleto)

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