segunda-feira, janeiro 19, 2004

Sem justificativo

Escrevi " A minha vida, a nossa vida, não tem alguma justificação, seja ela qual for". E a retórica deste nilismo, ao mesmo tempo burguês (há qualquer coisa de luxuoso em um de nós poder, pelo pensamento, prescindir do sentido da vida) tem de ser desmontada. [porque nem a todos é dado abrir as portas destas trevas do pensamento. há gente entre nós que vive o inferno na pele, no sangue, nos ossos dos dias e dos minutos. e dizer a esses que não há esperança é ir ao fundo de uma desumanidade cabrã, malsã.porque sabemos que sem ela deixam pura e simplesmente de resistir. ] Quando digo que, do lugar onde hoje habito, a minha vida, a nossa vida, não tem alguma justificação não quer dizer que atingi esse ponto de clarividência sobre a minha vida e sobre os demais que me permite dizer que a vida, a nossa vida não tem sentido. Quero apenas dizer que eu, racionalmente, filosoficamente, (não quero, dirás, e talvez o digas com propriedade) não consigo chegar à formulação dessa justificação. Face aos paradoxos, às monstruosidades, ao desperdício humano desta existência, à miséria moral que é ver sofrer o outro e não podermos fazer desse outro sofrer o nosso próprio dilaceramento, eu não consigo articular, formular nenhuma justificação. Sei de cor e salteado todas as conjunções possíveis, as frases a metro e de pacotilha, mas tudo isso, mesmo que dito pela gente mais respeitável, é tão pífio, e simultaneamente indecoroso, que mais vale calar. Ou seja, em relação a este aspecto, a justificação da existência, assumo a fractura não entre pensamento e linguagem, mas entre a linguagem do pensamento e a linguagem a que o meu pensamento não consegue aceder. Que é a deste animismo que me devolve, manhã após manhã, à vida. E que assim, na sua própria linguagem, formula um sentido cujo borbulhar de palavras ( nem sei se é com palavras que ele fala) me é tão traduzível como o ladrar de um cão, o grasnar daquele bando de cisnes que agora saiu do lago ou o troar da lengalenga repetitiva dos meus passos a fazerem-se à Calçada do Monte.

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