quarta-feira, janeiro 07, 2004

Utopia e Desesperança

No outro dia, num chat, encontrei alguém que, quando lhe disse que não tinha alguma esperança no ser humano, me defendeu o mais vigorosamente que pôde, um mundo de utopia. De crença numa determinada ideia de Justiça. Para ela 3%/97% não era de modo algum a falência do projecto humano. Pelo contrário, de dedo em riste, vituperava os 3% que andam a dar cabo do mundo. [3%/97%, era um nome de um espectáculo já com muitos anos de um grupo inglês que se constituia nesta terrível equação: 3% tem 97% dos recursos, 97% têm 3% dos recursos.] Não que esta não seja, como outras, estratégia legítima de tentativa de salvamento do naufrágio eminente. Mas há medida que tentava compreender melhor esta lógica incriminadora, percebi que a minha interlocutora não se considerava nem nos 3%, nem nos 97%. Tanto uns como os outros eram pronunciados através do pronome pessoal eles. Eles os 3% que lixam o futuro dos 97%. Eles os 97% por cento que são lixados pelos 3%. Creio que não lhe disse o que pensava desta lógica. Arrisquei apenas, como despedida, dizer-lhe que para mim, não há eles nem outros, nesta história. Talvez seja uma decantação profunda de uma mocidade cristã embrulhada com os valores de uma democracia acabadinha de chegar, mas a verdade é que para mim não é uma figura de estilo dizer que a "corda que ata o outro também me prende o pé". E que a morte do outro me morre a mim também. [É por isso que não suporto mais essas caras de espanto que imagino em alguns de vós quando lêem que não tenho esperança no ser humano. Parecerá até doentio, nilismo provocante, desestruturador, dirão entre vós. Ou os mais piedosos, o que se passará com o jpn? Nada, caríssimos idolatradores de sois incandescentes, continuo como vós e convosco a adorar a lua, as estrelas, cadentes ou carentes, os cometas. E àquela poeira cósmica que nos confunde. E até, no sobressalto de uma noite tranquila a lua por vezes acorda-me com um beijo, um abraço, pleno de sabedoria antiga. E amo a vida com todo o vigor das minhas células, do meu sangue, daquela inteligência que me antecede e sucede ao pensamento. A superior inteligência das coisas e dos seres. A superior inteligência das coisas e dos seres, esse teorema que me acompanha desde os quinze anos. E não é só de noite. Amo também as manhãs. As manhãs como esta em que a arquitectura se enlaça com o homem.]

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