terça-feira, março 30, 2004
EM NOME DO PAI
[Ontem foi o primeiro dia em que me encontrei com a nossa C. depois da morte do seu pai. Ela, meio allien, dizia, nem sei ainda como me sinto. Sei-o, é a dor mais terrível; como uma sombra, como uma núvem pesada e triste e traiçoeira enlaça-nos, abraça-nos, abriga-nos. Sem sequer dizer o nome, donde vem, para onde vai. Depois da água, depois da cascata, o deserto. O de nenhures. Disse-lhe, vou-te dar um texto que escrevi - publicado no Natal de 94, no VENTO NOVO, onde assinava regularmente a crónica Olho da Rua - quando o meu pai morreu. E depois emendei, três meses depois. A correcção linguistica disfarçando o inexpiável: morte de pai é intemporal. Acontece uma vez, uma única vez e para sempre. Aqui fica o texto. Também para ti. Deixei de te ver em ti, guardo agora o teu amor naquela criança que fere a calçada com o seu passo de gigante anão. Não te amo menos por isso. E um dia ele perguntar-me-á quem tu foste, e eu responderei quem tu és, meu pai. Ainda me lembro de ti, deitado na minha cama, a chorares aquela água da fonte seca, da fonte rude, agreste e... terna com que foste educado logo desde que nasceste, a dizeres-me "- Eu não me importo de morrer, não queria era que fosse já. Apetecia-me viver mais um bocadinho". Exactamente aquilo que uns anos antes, nesse entre a ficção e o real que tem sido a minha vida, a Ti Miséria me respondia, na entrevista que lhe fiz a propósito de "Nós de um Segredo", do Bando.]
Bem queria escrever sobre outro assunto. Aproxima-se o Natal, vejo a mesa composta, os pratos, os talheres, os doces e as carnes, imagino até aquele cacau a circular antes da cerimónia das prendas, há um manancial de temas habituais de conversa, mas não consigo falar de outra coisa senão da morte. Qualquer palavra que escorra para o papel será a seu modo sempre uma evocação da dor e da saudade de um filho que, depois de ter deixado de acreditar no seu pai do céu, perdeu o seu pai da terra.
Ao mesmo tempo essa evocação é qualquer coisa de tão intima em que não quero, não posso misturar o leitor. Terei então de me ocupar da morte como se falasse de vida. O que não é tão díficil quanto à primeira vista pode parecer. A vida e a morte, a noção que temos de cada uma delas, encontram-se tão misturadas que uma sem a outra não têm qualquer sentido.
E hoje nós sabemo-lo como ninguém. É que se antes, num tempo extraordináriamente recente, a estrutura da nossa vida quotidiana conseguia separar claramente, na terra, o que era morte e o que era vida, hoje já não se passa assim. Cada vez mais encontramos ao nosso lado pessoas que têm de negociar em vida com essa tragédia de um dia já não estarem connosco.
No outro dia um amigo de bairro, que já não via há muito, trazia no corpo os sinais da devastação da peste, da sida. Estava magro, pálido, aquela humidade deste inverno manhoso que temos tido trazia-o mal-disposto, inseguro. Talvez tenhamos estado uma hora à conversa. Falámos de tudo menos de morte, da ideia de morrer. Contou-me os seus projectos de trabalho, o modo como queria fazer um atelier gráfico em sua casa e espantosamente falou-me da vida. Na sua boca a vida tinha um tal cunho de autenticidade que me fez estremecer.
Embora fosse a morte anunciada que estava ali a falar comigo, conversar com ele era descobrir na vida uma vivacidade que eu desconhecia. E, por mais dolorosa que tenha sido para mim a perda de meu pai, compreendi que o seu desaparecimento fez parte de uma celebração muito antiga que a natureza tem com o homem. E que o verdadeiramente trágico não é irmos embora de vez, é partirmos sem termos experimentado as possibilidades que temos de nos realizarmos como pessoas. É abandonarmos este gigantesco palco mundial sem termos contribuido para enriquecer a experiência colectiva que o homem vem, desde há milénios, concretizando.
Esse sim, o maior momento de dor e perda que nos pode atingir. Uma ausência irreparável. Porque colectiva, de todos nós. Daí também esse estranho dever e direito de cada um não abdicar de lutar por essa experiência individual de escolha e liberdade que tem ao seu dispôr.
O meu amigo, e todos que estão com a morte estampada na testa fazem-nos lembrar que todos nós somos efémeros. E que antes de irmos embora pudemos tentar, já que nunca saberemos porque viemos e iremos, dar um sentido à nossa presença aqui. Boas Festas, leitor!
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