quinta-feira, maio 20, 2004

fala de um homem nascido em maio

Amanhã, uma hora depois do dobrar do dia, fará quarenta e duas vezes que assinalei a minha presença neste mundo. Das primeiras, muitas, vezes, fizeram-no por mim. E eu gostava. A minha primeira festa a sério foi na Ada-Pera, ali ao chegar a Mafra. Ou ao sair, claro. Embora a primeira que eu recorde, com a ajuda de uma fotografia esbotada, onde dá para se ver uma bola de borracha com quadrados negros, é do Parque de Santa Clara na Ericeira. Há uma grande espaço de tempo em que sei - há qualquer coisa em mim que me impede de o contradizer - que fiz anos mas que não me recordo bem como. Havia, houve, de certeza, pães de leite com fiambre e queijo, sumol de laranja e de ananás, aquelas laranjinas c que eu tanto adorava, arroz doce ou aletria, bolo de velas, prendas. Mais tarde, uma vez - num encontro internacional de palyworkers - no areal de S. João da Caparica,cantaram-me os parabéns em italiano, polaco, alemão, inglês, francês, espanhol e português e eu toquei ao de leve na magia. Tive ainda mais alguns acontecimentos que eu inscrevo na tal magia circundante. Mas o que de mais importante se passou foi que gradualmente o dia de anos deixou de ser um dia que eu esperava com ansiedade, esperando saboreá-lo desde o primeiro minuto até ao derradeiro e começou a ser um dia em que eu me surpreendo a pensar na vida, na minha vida, na vida do mundo que nestes últimos quarenta e dois anos cresceu comigo. Não lhe quero dar nenhum veredicto moral. Julgá-lo. Não quero fazer que penso e dizer aquelas coisas todas que já sei antes mesmo de começar a pensar. É assim que eu gosto de preparar o meu aniversário. Sentar-me sobre a minha vida e entretecer-me com o tempo que assim se tece. Deixar vir primeiro os instrumentos do pensamento e só depois pensar. Convocar anjos e demónios, fantasmas, monstros, duendes, gente de carne e osso. Fruir essa experiência de não sermos realmente importantes. A nossa importância, a única importância não é chamarmo-nos joaquins, luíses, anas, sofias, carlotas, pedros, cláudias, zés, antónios. A nossa única única importância é que podemos calarmo-nos. Escutar. Fazer disso fala. Embora, dizes e tens mais uma vez razão, é terrível escutar o mundo. O que fazer perante todas estas mortes civis? Vamos manter o sorriso, a esperança nos amanhãs quando a besta é esta alarvidade que ri no espelho que me acorda? Não há como fugir a esta evidência, meus caros amigos. Aquelas bestas que mataram nestas terríveis caçadas dos tempos modernos (chamas a isto moderno, imbecil?) éramos nós, não há como negá-lo. Eram por nossa causa, era para manter a circulação nas artérias e nas vias respiratórias das nossas cidades que eles mataram. Sim, podia ser de outra maneira, de outro modo, d'une autre façon d'être. Mas não foi. Agora só há um caminho. Ou paramos nós antecipadamente as nossas cidades ou seremos tão odientos, tão pouco civis que a nossa sobrevivência se tornará naquilo que estamos a fazer no Médio Oriente: uma questão de retórica.

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