sexta-feira, maio 21, 2004

PAZ VIOLENTA

"O pacifismo utópico tem o mesmo dom: tapar o abjecto com um pano; desviar as atenções, enfiar a cabeça na areia. Numa palavra-o pacifismo utópico serve para relativizar moralmente todos os actos. O pacifismo é a política da cobardia militante, a apologia da inexistência de dever, a política do nim. Detesto-o." Ao ler este comentário da Zazie na entrada de a Natureza do Mal, acabo por descobrir que não há nada mais próprio para celebrar o aniversário dos 42 anos do que pegar nas folhas de papel amarelecido a que chamei "Paz Violenta", e que juntei à Declaração com que, em 1980, pedi o Estatuto de Objector de Consciência, e vir defender esta ideia de não violência que é das mais persistentes e convictas com que me tenho amancebado. 1. Paz violenta. Há acções que são exercidas sobre nós que, naturalmente, nos impelem a reagir de forma proporcional. Quando eu agrido alguém - e estou a referir-me a uma reacção irracional porque excluo-me do número daqueles que pensariam em agredir alguém - por mais violento que eu esteja a ser com o agredido, eu comigo mesmo estou a ser natural. Reactivo. Libertando até uma determinada energia. Ora quando eu travo essa reacção instintiva e domino o meu impeto (que me levaria a automaticamente reagir a uma agressão com uma agressão) eu estou a exercer uma determinada força, domínio sobre mim mesmo, tanto mais violenta quanto maior tiver sido a acção que me provocou. Estou a ser violento comigo mesmo. Espécie de barragem eléctrica em potência, investindo na doçura, no mel, na afabilidade, na amabilidade. 2. Somos sempre violentos. De uma forma reactiva ou mudando o padrão de comportamento e apostando na não violência. Connosco próprios ou com os outros. Se somos violentos com os outros somos sempre condicionados pelo exterior. Apostamos numa espiral de violência. O Médio Oriente é terrivel exemplo disso mesmo. Há dois meses e pouco chorámos as vitimas inocentes do terrorismo, em Madrid, e gritámo-lo abjecto porque contra civis. Ontem exércitos profissionais, treinados para defender as nossas democracias atiraram sobre uma multidão de manifestantes ou sobre um casamento. 3. Aquilo a que algumas pessoas maldosamente chamam pacifismo utópico - e outras sem maldade nenhuma, faço fé nessa ideia em relação à Zazie - resume-se a isto: a ideia de não violência é uma ideia tão radical que não pode ser pensada senão numa sociedade original. A partir do momento em que mundo foi varrido por essa ideia guerreira é impossível pensar na paz de uma forma absoluta. 4. O que essas pessoas maldosas e não maldosas tardam em admitir é que essa forma de pensar impôe de forma absoluta a ideia de guerra, que assim até fica com o caminho aberto para poder ser entendida como uma actividade de procura da paz. Outra coisa que estas pessoas não reconhecem é que o militarismo utópico tem o mesmo dom: tapar o abjecto com um pano; desviar as atenções, enfiar a cabeça na areia.." A utopia do militarismo é a da resolução de conflitos através da imposição da força. Mas não, os conflitos nunca se resolvem, senão temporariamente, pela imposição, pela força, pelo acto de guerra. Ficam, ou parece que ficam, em suspensão. E voltam de novo, com energia redobrada, enriquecidos pelo acto de guerra que, na sua utopia, ambicionou ser derradeiro, final. Poderíamos chamar a isto de hiprocrisia não fosse mais apropriado intitulá-lo demência. Era Paulo VI que dizia que a 3ª Guerra Mundial tinha começado no fim da 2ª Guerra Mundial. 5. A ideia de que eu sou mais corajoso quando tenho uma arma na mão não precisa de descritivo nem caracterização. Fala por si mesma. Lembro-me que quando fiz a objecção de consciência não havia estatuto de objecção de consciência. A minha prespectiva era portanto colocar-me a partir dos dezoito anos sobre o tecto de uma ameaça. Ameaça de que não havendo ainda estatuto de objecção de consciência ele, quando viesse, seria pior do que qualquer um que estava entretanto em vigor (há que reconhecê-lo, esse temor acabou por não se concretizar e tivémos um Estatuto que apanhou a boleia do pensamento europeu sobre esta questão. Ameaça de que não pudesse sr trabalhador do Estado ( esta pareceu-me, naquela altura, uma garantia de felicidade!). Ameaça de que pudesse ser preso se, inadvertidamente, num assalto, pudesse ter uma reacção intempestiva ( A história, se te violarem a mãe, parece hoje história de ficção do tempo da avózinha, mas ouvi-a eu, por um sargento com voz castrada, no DRM de Setúbal). Ameaça de todos os aborrecimentos intercalares até ter o estatuto, já que sempre que queria sair do paíz tinha de ir obter uma licença apresentando a guia de marcha autenticada, que não podia apresentar a situação militar resolvida. 5. Não fosse proferida por uma voz que presumo doce, como a da Zazie, não o tivesse escutado num dia propenso ao desamargar do mundo, e seria fortemente revoltante ouvir que esta atitude que, conscientemente me podia ter hipotecado grande parte do meu futuro é a "política da cobardia militante, a apologia da inexistência de dever, a política do nim." Principalmente porque sinto que tomei essa atitude num dos momentos mais bonitos de lucidez, de me sentir devedor à comunidade donde provim, num dos momentos mais afirmativos da minha vida. 6. Já depois de ter escrito este texto chamaste-me a atenção para a diferença entre actos de guerra e os actos de libertação. E sim, independentemente da forma mais ou menos radical com que eu encare a não violência, essa é uma destrinça importante. No entanto, uma das razões para o meu radicalismo neste domínio é a consciência de que a libertação que não se liberta da imposição está no limbo da zona de guerra, pronta a entrar neste ciclo vicioso que vem desde o princípio (ou será fim) do mundo.

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