terça-feira, maio 11, 2004

O que se poderá esperar de nós?

Procuro um deserto de almas compativel com esta não-dor. Alguéns que não aceitem o desperdício como natural. Alguéns que acreditem naquilo em que eu já não acredito e que me levem pela mão por dentro dessa querença. Procuro, com o desespero dos que há muito deixaram de esperar, de crer, alguéns que me façam comungar, assim, como há muito, na Basílica de Mafra, com a boca cheia de hóstia e de crença num mundo mais fraterno, mais justo, mais misericordioso, eu comungava mas agora já não o pão, o corpo, sim, o mundo. O mundo. Almejo o mundo desde que nasci. Já me inscrevi num partido político, o único, reconheço, antes tinha sido sócio do sporting e do benfica, militante da uec, já me filiei em todas as associações que se me apresentaram pela frente, em todas as redes que me assobiaram, tenho orgasmos múltiplos com aqueles grupos que não-são-bem organizações-mas-gente-diferente-que-não-tá-para-isso,-isso-o-quê,-pergunto-não-te-rales-isso, criei um, dois, três blogs, dois, três sites, desconjuntei-me no icq, nos chats da uol, trabalhei com, para, pelos outros, mas tudo isso, que não foi nada, rigorosamente nada, nicles, nestum, pevide, nérpia, embora seja tudo, tudo o que até agora pude fazer com este sacana do livre-arbítrio, um tudo nada que só aumentou a minha incomunidade, o meu desejo de sair, de me espatifar, esborrachar contra o muro, o meu anseio de Berlim, a minha sensação de que a minha dívida - aquilo que o mundo de mim poderia esperar se a tal eu pudesse corresponder- é como a externa dos países do terceiro, do quarto, do quinto mundo, uma lua em quarto minguante, maré vaza, cenoura presa nos meus arreios, por mais que corra há minha frente sempre, cada vez mais, esse vazio, essa não-dor, esse para lá do poema, da loa, do aconchego, da mão fácil ou díficil, sim, desarredem nazarenos, tende misericórdia de vós antes de mim ou comigo, o pensamento não chora, não se baba, não soluça, não carece senão de desafecto, cada vez mais desafecto, um dia o desafecto final, um mísero mas entrelaçante, comovente instante de luz, uma faísca possivelmente, o que eu queria era entrever na nossa vida a vida que da nossa vida é possível antever, tem de ser possível, é com ela que ainda me permito pensar que a tirania, a estupidez, a violência não são lugares eméritos, não são nem lugares, estão aí, por aí, não são uma fatalidade, ou pelo menos que é possível existir como se o não fossem, como se um dia claro, raiado pelo sol, beijado pelas águas do rio mais rio de toda a minha vida, um dia solidário, um dia em que tu, ele, vós sejam eu, pelo menos para mim, em que a tua morte morra na minha pele, na minha carne, na minha alma, e que isso seja a contramão do poema, em que a tua, a dele, a vossa morte viva na minha morte, em que o Outro seja um passo para a loucura, a loucura de com minúcia, com exactidão, com paciência infinda, desde a porta da minha casa até ao regresso à mesma porta, certamente pela madrugada infame, dizer que todos os tus, os eles, os vós, são eus, eus dependurados na minha consciência, nas minhas marcas, ouvindo-os, escutando-os, tocando-lhes se for preciso, quando era miudo queria ser missionário, antes do Super-Homem os meus super-heróis foram esses homens sem rosto que viviam numa outra África, terra da fome, da peste, da lepra, os missionários que me eram trazidos pela Audácia, revista cristã para miudos de palmo e meio,também eu mãe, também eu quero ser missionário, nos campos de febre, nos campos da fome, procuro alguéns compatíveis com este estilhaçar brando, sereno que é o avivar desta pergunta matinal com que nos devemos uns aos outros, o que é possível esperar de nós, o que é possível esperar de nós irmãos, camaradas, companheiros e amigos, putas e pederastas, chulos e campónios, pedófilos, teófilos, cabrões e vindouros, fenestrados, diagnosticados, sinaleiros e bombeiros, juízes, deputados da nação, artistas, cançonetistas, barbeiros, mestre-escolas, fiéis de armazém, guarda-freios, baptizados, algaliados, encurralados, aleijados, aleijados de guerra como chamou um dia Miguel de Unamuno ao general milan astray, neófitos, cabrões de neófitos, que à falta duma humanidade prevalecente se tentam deuses decidindo na grande mesa censória das suas consciências altaneiras, garganeiras,quem vive, quem morre, aleijados desta guerra sem quartel que é respirar, respirar o mesmo ar, respirar brando e suave de criancinha, respirar a dúvida, a inquietação, o que será justo esperar de nós, de nós sem nós, sem ateios, nem amarras, sem sequer pontos de amarração. O que se poderá esperar de nós em nós?, nessa ideia antiquíssima de comunidade, de lugar onde se está, disseste, um teatro, aceitemos por agora, provisoriamente, esse lugar de nós é um teatro despido de bambolinas e telões, por cima de nós uma teia, entrelaçada, aceitemos por agora, provisoriamente, esse lugar de nós é um palco aberto à expressão, à voz.

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