terça-feira, maio 11, 2004
A Mulher da Burka Invísivel
Faites Vous-Même Votre Malheur, é o livro que a Leonor, a Leonor Areal me trouxe ontem. De Paul Watzlawick. Ela tinha lido as minhas histórias sobre o 25 de Abril em calções e como numa delas eu falava deste autor pensou que eu gostaria de o ler. E estou de facto a adorar. Dá-me alguma esperança, a mim e a todos os leitores, este livro. Afinal, a infelicidade é possível. Está ao nosso alcance. Teremos de a merecer, sem dúvida. De a conquistar. Mas existe. É possivel. Está ao alcance de uma mão. Não teremos de morrer todos empanturrados de felicidade malsã. Alguns de nós poderão, arduamente, conquistar esse estado de insuportabilidade. A ideia de insuportável ocorreu-me quando eu estava sentado na segunda fila de mesas da Brasileira. Segurava na mão esquerda o livro de Paul Watzlawick e com a direita mexia ora na melena, ora na chávena. No rebordo da chávena. Gosto de percorrer o dedo pelo rebordo da chávena num misto de sensualidade em que, se tu te proveres de alguma imaginação e fantasia, poderás imaginar que eu tenho tanto sex-appeal como o homem da martini. E foi quando eu estava com estes jogos pré-eróticos dissimulados, que o insuportável surgiu. Através daquela mulher que trazia uma burka invisivel. E na cabeça uma boina de lã vermelha, vermelho também era o casaco, a saia, a camisola, o cinto não, o cinto era de argolas prateadas, as meias, os sapatos, a correia do relógio, a écharpe,a própria carteira e cigarreira, tudo, numa gradação de cores e tons é certo, tudo era vermelho. Menos uma pasta, uma pasta preta e uma mala, também preta. Reparei nela logo que entrou. Trazia o pescoço dobrado sobre a sua garganta, com a pasta tapando ostensivamente a cara, principalmente a boca. Foi para a primeira cadeira junto à parede da primeira fila de mesas.Mesmo sendo complicada a operação, estavam sentadas algumas pessoas, nunca baixou a pasta da boca, o que lhe tirava mobilidade. Enrolou-se em si mesma para se poder sentar sem perder o controlo da ocultação da boca que tão zelosamente protegia. Colocou a mala e a pasta em cima da mesa, como se erguesse uma muralha. Ostensivamente colocava a mão a tapar a boca, o polegar encostado à bochecha esquerda, os outros quatro dedos, bem unidos, descrevendo movimentos nervosos de translação entre o olho e o queixo. Olhei-a, o menos ostensivamente que podia, o menos intimidatoriamente que consegui, o mais verdadeiramente que me foi dado olhar. E foi assim durante vinte minutos mais ou menos. Por vezes baixava a mão, para comer, para levar a comida a boca, e até, surpreendentemente, para colocar o seu queixo na palma da sua mão, libertando-a, com jovialidade recuperada, deste jogo de esconde-esconde. A sua insuportabilidade estava cheia de sofrimento, pelo menos era assim que a via, coberta de uma burka invisível. Aquela mulher, ligeiramente gorda, com um ar toque e foge árabe, indiano, poderá ser tudo - no ínicio, julgando ver Genoveva Faísca ao balcão, até pensei que era um happening, uma performance - mas eu imagina-la-ei como uma mulher que na Lisboa de 2004, no Chiado da nossa Lisboa de 2004, se colocou no lugar das mulheres, de todas as mulheres obrigatoriamente escondidas atrás de uma burka para sofrer ao limite do insuportável com a dor que as atravessa. Era por isso que enquanto a empregada da Brasileira a olhava com um misto de impaciência, estranheza e ironia, eu, por meu lado, lhe devolvi toda a ternura que um olhar, que um simples olhar pode contrabandear.
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