terça-feira, maio 25, 2004
Paz Violenta (1)
[ Há algumas referências menos actuais neste texto, que creio terá sido publicado na ZONA NON, mas mantenho-o como momento de reflexão de um adepto da não violência sobre o sentido desta atitude no momento actual. )
"Não terá sido por acaso que as últimas declarações de Dalai Lama sobre os bombardeamentos no Afeganistão me trouxeram para o interior deste desconforto - e imperativo ético - que é hoje, neste perturbante momento da vida da nossa imberbe aldeia global, defender a ideia não violenta. É que, quando os mais avançados e potentes exércitos da actualidade se instalam na terra, nos céus e nos mares do nosso mundo, militarizando-o despudoradamente, este ideário, aparentemente materializa o mais inútil dos pensamentos. Mais, parece que ele só serve para nos desorientar, para nos incapacitar de compreender como agir no mundo que emergiu de 11 de Setembro.
Também por isso, muitos analistas advogam que a partir do atentado às Torres Gémeas só se pode estar num de dois lados, ou contra a guerra ao terrorismo, ou a favor dela. Não creio que haja muitas dúvidas de que a destruição das torres gémeas e o consequente assassínio em massa de milhares de pessoas foi indiscutivelmente um poderoso acto de guerra não convencional, assim como a declaração de guerra ao terrorismo pelos E.U.A e secundada por uma surpreendentemente alargada coligação internacional, por mais que tenha sido a oportunidade para uma ofensiva diplomática e política sem precedentes no pós-guerra fria, é suportada também por um potente dispositivo bélico.
Donde resulta que todos aqueles que pensam, como eu, radicalmente, que a destruição do outro é sempre uma perda de razão e uma posição de fraqueza face ao outro, mesmo quando objectivamente a sua não destruição pode implicar a nossa própria eliminação, parecem estarem desconfortavelmente afastados de poderem pensar sobre o mundo onde hoje vivemos. É essa dificuldade de enquadrarmos o uso da violência, que faz com que muitos dos analistas, independentemente da sua proximidade face ás posições americanas, se entrincheirem numa acusação de que o pensamento não violento é hipócrita, só sendo possível porque há alguém que - mesmo perdendo a razão do nosso ponto de vista – se oferece para aniquilar a força que nos pretende destruir.
O argumento é poderoso, principalmente no caso do terrorismo, há que o reconhecer. De facto se contra forças policiais e exércitos convencionais, sejam de ditaduras ou de democracias, a força da atitude não violenta tem demonstrado virtualidades que os próprios exércitos foram sendo obrigados a reconhecer e identificar, que força tem esta atitude perante um exército não convencional, fundamentado num fanatismo religioso exarcebado, que militariza à força todos os civis necessários para a prossecução das suas acções? É que se, por mais que, enquanto objector de consciência ao serviço militar, professe algo desesperadamente, que o último reduto da nossa independência não serão nunca umas quaisquer forças armadas (independentemente do tipo de fragatas, aviões ou submarinos com que estiverem equipados), também há que admitir que, ao contrário das organizações e seitas terroristas, as democracias modernas desenvolvem um esforço para tentarem separar - nem sempre com clarividência e produtividade - a sociedade militar da civil, subalternizando a primeira à segunda.
O que quer dizer que, nestes casos, mesmo a acção militar - que é intrinsecamente, na minha opinião, uma usurpação da inteligência humana - é tensionada por um pensamento político que lhe impõe, permanentemente, alguns limites, tanto em termos de natureza, como de proporção e de medida da sua acção. O mesmo não se passa com as actuais organizações terroristas do chamado fundamentalismo religioso, cuja prática se caracteriza por uma militarização absoluta e suspensiva da acção de guerra, que será sempre tanto mais eficaz quanto mais furtiva, imprevisível e ameaçadora for para toda a nossa vida quotidiana.
O argumento é por isso poderoso, e bem mais difícil de equacionar do que àquela provocação cretina que eu, e todos os que nos declarávamos objectores de consciência - antes de haver um estatuto que protegesse a nossa condição - enfrentávamos quando chegávamos a um quartel e tínhamos de responder, naquilo que se julgava ser um teste à solidez das nossas convicções, sobre como nos defenderíamos se um eventual agressor atacasse o nosso pai ou tentasse violar a nossa mãe.
É verdade que – e embora isso não nos aligeire o desconforto - não serão apenas os adeptos da não violência que estarão numa situação desconfortável face á militarização do mundo em que vivemos. No fundo, talvez possamos reconhecer que o generalizado mal estar que vai por esse mundo fora deve tanto à sensação de ameaça que paira sobre a segurança das nossas vidas e o bem estar da nossa casa, da nossa rua, do nosso país e do nosso mundo, como à de que nos encontramos à porta de um tempo de excepção, em que, em legitima defesa, possamos colectivamente ser levados a agir de forma totalmente contrária às nossas crenças, credos e convicções.
E é precisamente essa ideia de legítima defesa, e a sua justificação – mesmo para aqueles que partilham o ideário da não violência - que tem sido o suporte político de uma ainda frágil coligação mundial contra o terrorismo, integrando tanto países que têm alianças de sangue, como países que têm alianças políticas, culturais e militares e até, surpreendentemente, países que mais moderada ou mais extremadamente se hostilizam. Porque de facto é objectivamente possível definir, num contexto mundial, o terrorismo como uma ameaça à sobrevivência física de todos nós, quer sejamos transformados em armas quer em alvos humanos, e sendo assim é do mais elementar bom senso desmantelar as organizações terroristas, desmantelar a sua teia de apoios mais ou menos directos, mais ou menos encapotados, anular as suas possibilidades de financiamento e de recrutamento.
O facto de o combate ao terrorismo poder ser uma tarefa de legítima defesa não quer dizer que o seja de forma incondicional. Pelo contrário. Quer dizer que só o será se ele se mantiver enquadrado por um conjunto de circunstâncias, de onde sobressaem a da procura da máxima objectividade na definição do perigo e da ameaça, o da proporção da medida defensiva legítima e o da salvaguarda incondicional da dignidade humana das populações civis. Se por um lado, face ás declarações de Bin Laden e da Al Quaeda, é razoável pensar que, devido a esta dupla condição de o terrorismo nos reduzir à condição de arma e alvo, seja acção de legítima defesa a neutralização da capacidade destrutiva desta organização, por outro lado, há que dizê-lo, já não parece razoável que, para neutralizar a capacidade de acção de milhares de fanáticos que estão espalhados pelo mundo e operam debaixo do nosso nariz, se coloquem em perigo de vida muitos milhões de pessoas sujeitas ao terror da fome, das epidemias e da morte nos lugares aparentemente recônditos do Afeganistão.
Também, o direito à legitima defesa em nada se confunde com o direito à retaliação, como muitas vezes vem sendo dito. Da mesma forma que o direito à legitima defesa consagra o direito à sobrevivência e é por isso virado para o futuro, o direito à retaliação tem os olhos postos no passado, na perda sofrida. Conferir o direito à retaliação é abrir caminho para a justificação dos atentados de 11 de Dezembro, já que eles também eram, na cabeça dos seus autores, retaliação de uma outra acção que certamente retaliava uma outra retaliação e, daí em diante, até ao inferno, de Dante.
Por outro lado, se é de uma cegueira inqualificável não reconhecer as grandes responsabilidades que o chamado mundo Ocidental - e principalmente o mundo anglo-saxónico - têm no modo como, entre o afecto e a displicência, as acções terroristas dos fundamentalistas islâmicos são recebidas pelos países árabes, também é de uma miopia terrível não enxergar que, mais convicta ou menos convictamente, o chamado mundo ocidental, sob a liderança do eixo franco-germânico mas com o reconhecimento político do mundo anglo-saxónico, e muito principalmente do Reino Unido, têm colocado na agenda do combate ao terrorismo uma nova atitude face quer ao mundo árabe, quer ao papel da ONU.
Mais uma razão para que seja tão perigoso fundamentar o combate ao terrorismo no passado, nem que ele seja ele tão presente como 11 de Setembro. Mesmo que ainda estivéssemos na infância do mundo, como alguns defendem, seria já muito tarde para reivindicarmos a nossa inocência ou para inventarmos países que não tivessem um passado manchado pela barbárie. A nova ordem internacional, a acontecer, será feita com e entre os países que existem hoje no mundo, será feita com a memória dos massacres e das chacinas que cometeram. E será essencialmente suportada na convicção de que o preço de conseguirmos conquistar o futuro, será o de sermos capazes de olhar a linha do horizonte e confiarmos que esta nova consciência que despertou em 11 de Setembro, também tenha atingido o outro. Sabemo-lo hoje, mesmo que a contragosto, estamos condenados a compreendermo-nos, ou, estaremos condenados por não nos compreendermo-nos.
É por isso também que o direito à legitima defesa no combate ao terrorismo não pode ser equacionado sem a defesa daqueles que não têm direitos, como neste momento são os milhões de pessoas –eu escrevi pessoas e não refugiados - deslocadas das suas casas, encurralados entre o Irão e o Paquistão. Porque afinal, na aldeia global o recôndito dos lugares não existe. Se em 11 de Setembro fomos todos habitantes de Nova-York, hoje, somos todos afegãos e evitar a tragédia humanitária deve tornar-se uma prioridade de qualquer combate ao terrorismo.
Há que dizê-lo com todas as nossas forças, para além da ameaça que a Al-Quaeda quer representar, o chamado mundo ocidental está na eminência de uma ameaça sem precedentes, e muito mais devastadora, aos nossos valores e culturas, e esse perigo é de virmos a ser autores de um monstruoso genocídio. Temos de reconhecer que, felizmente, por mais que tenhamos as consciências manchadas de sangue, não estamos preparados etica e culturalmente para suportarmos a responsabilidade da autoria directa de um horrendo crime contra a humanidade como aquele que pode estar prestes a acontecer no Afeganistão.
Se houvesse alguma bipolarização ela estaria aqui, entre aqueles que reconhecem o valor incondicional da dignidade da pessoa humana e aqueles que, por mais bem intencionadas que sejam, só o reconhecem se.
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