quinta-feira, maio 13, 2004

Power in the darkness

Um pouco em contramão com a entrada anterior, muitas vezes quando me acode o problema do poder na minha vida, também me acorre este verso, creio que de "Time", dos Pink Floyd. E assomou-me agora, enquanto entrava neste teatro, para retomar o meu trabalho, depois do almoço. Talvez pela escuridão do palco, luz que se rasga antes de entrar no território do veludo dos cortinados e das carpetes que filtram as sonoridades, protegendo a sala principal do rebuliço, do formigueiro que é hoje, um teatro. 1. Até chegar aqui tive de atravessar algumas zonas menos claras, mais confusas, mais ambíguas, pelo menos para alguém que tem uma forte costela rebelde, uma entrincada cultura anti-poder. Nomeadamente quando trabalhei como adjunto aqui do Director do Teatro, entre 1997 e o Verão de 1998. Ou quando, de uma forma institucional, durante seis meses, em substituição do meu colega Fernando Augusto - entretanto falecido- assumi a chefia da Divisão Cultural do Instituto. Ou finalmente, numa combinação subtil entre formalidade e informalidade, quando coordenei uma Equipa de Projecto para a Formação. 2. São experiências que - para além daquele caudal de aprendizagem que tornam impraticável o arrenego dos dias vencidos - enquanto exercício do mando, não me deixaram saudades. Que reforçaram a minha convicção de que se o ser humano tem alguma mais valia neste pantanoso e multimilionésimo movimento molecular que é a vida é o de poder vir a resolver de uma forma combinatória entre razão e emoção, o convívio do principio da ordem e da disciplina necessárias à reprodução e perpetuação do nosso mundo com este outro, que nos é dado pela prática desse mesmo mundo, a de que a vida só o é verdadeiramente enquanto aventura entre pares, entre iguais. 3. As questões da liderança só fazem sentido se vistas assim, no plano da relação entre iguais, entre pares. Quando reflicto sobre a minha experiência passada aqui há quase seis anos, verifico que não é só a reconstituição de mim próprio que me causa algum embaraço, também a daqueles que me cercaram. O mundo que resulta da configuração do mando, do obedecer, pode até ter condições de necessidade, mas é muito, muito pobre, tanto de um lado, como do outro. Nem me interessa muito perceber onde é que isso foi mais ou menos, sou radical nisso, o mando e o obedecimento, desmerecem-nos. 4. "Trincamos o caroço, mas já não saboreamos a cereja", é um verso de Jorge Palma que trago sempre a tiracolo para ocasiões como esta. Escrevi há uns anos esta peça que tem também a ver com este problema. E mais recentemente, ao encontrar numa livraria o Discurso da Servidão Involuntária tive um momento de revelação daquilo que eu andava à procura. Há, existe vida, existência provável para lá desta experiência equívoca do mando e do obedecimento. 5. Dizer que o mundo sem mando seria o caos, é não reconhecer que é o mando que instala o caos no mundo. Um caos mais profundo do que aquele que a mão firme consegue suster. Ou pensa que consegue suster. Porque estamos diante de um caos não derrímivel. Natural, quer dizer, necessário á natureza do mundo. 6. Descobri entretanto que tenho algumas marcas de personalidade que não me tornam um possível candidato a chefe. Não suporto o frio, a escuridão de um amor, de um afecto que possa ser assaltado em todos os seus momentos pela insegurança, pela dúvida. Estes rostos felizes há minha passagem serão pele e face ou máscaras de medo e reverência? É aqui, neste lugar de dor do mal-amado que se constrói o desprezo que sustém a usura e a prepotência. Também a ansiedade. Dizem-me alguns que eu era frio, autoritário, não aceitando aquilo que eu interpretaria como sinais de uma falta de empenhamento. Que exigia dos outros aquilo que exigia de mim mesmo. Contam-me casos que me fazem corar de vergonha. Nem me interessa pensar que era a minha primeira experiência de mando efectivo. Estou e estarei longe desse lugar onde o exercício do poder desgasta e corrompe. Como Kaspar, de Peter Handle, direi, "lembro-me de alguém que em tempos existiu". Fui à terra do mando e do obedecimento e regressei, não incólume, intacto, mas regressei. 7. O exercício do mando e do obedecimento tem esta singularidade: sentimo-nos frequentemente impotentes para melhorar efectivamente a vida dos nossos semelhantes, descobrimos, muitas vezes tarde de mais, que o único poder efectivo que temos, tivémos, foi o de, involuntaria ou voluntariamente, massacrar a vida de alguns dos nossos, na mesma, semelhantes. 8. Vivamos como e para um mundo de homens e mulheres livres, esse o maior desejo que podemos ambicionar na construção da nossa ideia de humanidade.

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