sexta-feira, julho 23, 2004

Vinte Anos Abertos

Ontem à noite foi a primeira apresentação pública de "Que esperar de nós?", na Escola de Enfermagem da Calouste Gulbenkian. Repete hoje,  sendo a última apresentação, antes das férias. É pelo Teatro Andamento. O primeiro grupo de teatro desta Escola (que tem sido palco de algumas experiências de integração de práticas artísticas no ensino de enfermagem e nas quais surge Arlete Canhoto Abreu como rosto pioneiro desse trabalho que visava dar ao enfermeiro uma maior consciência do seu papel social). Oito rostos dos nossos vinte anos abertos. Durante sete meses escavámos literalmente as paredes, o chão, à procura de histórias e sentidos. Desde o início encontrei pessoas que escreviam com grande sensibilidade e as primeiras  experiências que fizémos com os seus textos confirmaram esta intuição. Era possivel desafiar a maior parte deles a escreverem os seus textos.  Depois, logo no ínicio, a Margarida Guia - que estava em Portugal para orientar um atelier na Abril em Maio - ajudou a dar o empurrão inicial, deixando marcas que ainda hoje nos abanam. Sete meses são cerca de duzentos e dez dias e nestes houve muitos em que pensámos, não vamos conseguir. Pelo grupo foram passando e saindo pessoas, como se usa dizer, faz parte.  Resolvemos utilizar os espaços da escola. Uma árvore logo à entrada fez surgir Méan, uma alegoria do confronto entre a natureza e a cultura, que nasceu assim, de jogos em torno de uma árvore com aviões a passar e tudo isto enquadrado pelo Hospital de Santa Maria. A biblioteca e uma máquina de fotócopias que desde o ínicio quisemos que tivesse um efeito de iluminação sincopada sobre o espectáculo, trouxeram-nos António, o Rapaz da Biblioteca, personagem difuso onde ecoam ressonâncias do autista de Dustin Hofman em Rai Man e o de Quasimodo. Uma lavandaria, espaço cénico que nos entra pelos olhos adentro, trouxe-nos não só a Maria, com as suas máquinas a quem trata por filhas, também o desenlace de um quase amor entre António e Maria. Um elevador trouxe-nos um Aterrorizado,  totalmente submerso pelos seus medos e pânicos.  Um belissimo texto de Abel Neves trouxe-nos uma Pintora que insiste em colocar cor, cores, todas as cores no mundo, no seu mundo, no nosso, e promete fazê-lo contra todos os obstáculos, mesmo que lhe firam as mãos ou até, a ceguem. Laura, uma outra personagem, trouxe-nos a ideia de responsabilidade e acabou por fornecer a chave para todo este enigma, já que, ao resgatar o tempo que antes de si os seus antecessores tinham vivido a mais, tem de celebrar um acordo com o diabo e introduz na vida de todos os personagens - não o direito ao paraíso como nos Autos de Gil Vicente - a ideia de responsabilidade face à vida que levamos. Não se trata de um espectáculo acabado -  em Outubro quando o retomarmos já se prometem alterações - mas talvez muito dos espectáculos acabados sejam apenas isso, espectáculos acabados.  O que é importante é que, naquilo que ele se assume, ser um contributo para uma descoberta da escola, do espaço físico onde todos nós andamos a desenhar riscos e rabiscos no esforço de humanizar a prestação de cuidados de saúde pelos enfermeiros, o desafio foi alcançado. Graças em grandecíssima parte à generosidade dos vinte anos abertos, o que é também, duplamente, um sinal de futuro. Eu, como alguém diz na peça, volto rapidamente, tal como o coelho da Alice, para o outro lado desta aventura fascinante que foram estes sete meses que passámos juntos a criar. Aprendendo a ser e estar em conjunto.  Ao principio, muito inseguros, estavam ávidos de elogios que redobrassem a energia com que estavam presentes. Eu era, inicialmente, parco nesses encómios. Estava lá para o que desse e viesse e esse era e é o maior elogio com que podemos festejarmo-nos. A presença, a continuidade. Mas depois começaram a surgir as revelações. Onde aqui e acolá passam para o lado mágico da representação, do estar de dentro da ficção, da urdidura. Eles, por vezes,  olham-me como se eu fosse um mago mas já não me incomodo, sei que ao longo deste tempo  já aprenderam, a magia está neles.

1 comentário:

Velasquez disse...

Aqui há posts diferentes.. que me estimulam e me fazem sorrir:)


Avancei até onde o infinito
Congelava a memória desta data
E o apego nos saciava, aflitos
Reféns do nosso amor e acrobatas
Sabendo que a inveja dos delitos
É dos outros e dos beijos de prata
Que perduram na montra duma mente
Onde um sorriso sucumbe o ausente.


albertovelasquez.blogspot.com