segunda-feira, agosto 30, 2004
Obrigado, Woman on Waves
1. Algumas coisas térreas, prévias. Talvez tenhamos caído todos no engodo. Não sei quem o inventou mas ele, o engodo, só aparentemente serve a favor da apologia dos chamados movimentos pró-vida, já que é contra a inteligência daquilo que defendem quer aqueles que acham que a interrupção voluntária da gravidez deveria ser prática criminosa, quer aqueles que pensam que deve ser legalizada. Se se entender que ser contra o aborto é desejar que esta prática não precise nunca de ser realizada, todos nós somos contra o aborto. Devemos neste assunto falar por extenso: há quem defenda que a prática da interrupção voluntária da gravidez deve ser permitida e outros que acham que deve ser proibida. Não há outra coisa em discussão no Portugal moderno, de hoje. Poderá e descobre-se que sim, nesta discussão, muitos implicitos e demasiados subentendidos. Não é com eles que nos entenderemos.
2. Já que falamos da vida humana, da vida daqueles que poderiam ter sido os nossos filhos, juntemos aos principios éticos alguma estética. Ao dizer-se o aborto está-se logo, nos seus limites, contaminar a linguagem. Aborto é o feto expulso ou uma planta ou vegetal que não completou o seu desenvolvimento natural; é uma aberração, uma monstruosidade. Aborto é também, assim o designamos, a própria acção de abortar. E de corruptela em corruptela - de significado, entenda-se - a linguagem acaba por se prostituir falando antes de falar, dizendo o que ainda não se disse, imprimindo uma carga que dificilmente escapa à nossa capacidade de percebemos a realidade sobre a qual falamos. Diz-se fazer um aborto e, devido à força performativa do verbo fazer, parece que sim, que se faz um aborto e que também, que se quis fazer um aborto. O que se faz no entanto , voluntariamente mas a contragosto, é uma interrupção voluntária da gravidez. Interrompe-se a gravidez. A Natureza fá-lo amiude e talvez impunemente, a ciência médica pratica-o em casos especificamente tolerados, as pessoas realizam-na quando por ordens de razões diferentes decidem não prosseguir aquilo que por fortuito ou até mesmo por plano tinham iniciado. Dai resulta um feto expulso e morto; dai resulta que a vida de quem gerou esse feto, por uma avaliação própria, seguirá o seu curso de uma forma mais digna, isto na versão dos próprios. Dizer fazer um aborto implica desde logo uma dramatização da situação e a dramatização da mesma só pode servir para ajudar á sua criminalização.
3. Dizer fazer o aborto é tão incorrecto como, pelo lado daqueles que defendem a interrupção da gravidez, dizer fazer melhor vida. Se neste último caso se estaria a apagar a circunstância dramática de que desta operação resulta também um feto que vê interrompido o seu desenvolvimento, no primeiro está-se a descrever esta acção dramatizando, de forma totalizadora, uma das suas consequências. Logo aqui se vê que aparentemente à partida quem defende a legalização da interrupção voluntária da gravidez foi atraído para um engodo de uma guerra simbólica onde logo ali perdeu alguns pontos significativos. O que é mais importante é que -para lá daqueles que vêm isto como uma guerra - para todos nós que tentamos encontrar as nossas consciências e o nosso profundo respeito, afecto e até, admiração pela vida, este equacionar é desde logo meia derrota do pensamento.
4. Insisto na absoluta necessidade de exaurirmos a linguagem da mentira que a ela se acopolou se quisermos que seja a vida, a nossa vida a ganhar esta batalha. Nem interessa saber quem começou este engodo. O que interessa é perceber que enquanto ele se mantiver estamos na mão de argumentários que levaram tão longe o seu desinteresse pela nossa inteligéncia que desistiram de a seduzir, de a persuadir, insistindo em aterrorizá-la, em manipulá-la.
5. Se aquilo que pensamos é realmente justo, não necessitaremos da mentira, nem da dramatização, do troar maldito que habita junto do nome e o leva até à incapacidade dele nos dizer alguma coisa que não seja a mentira que nele se instalou. É uma questão muito séria para tanto ruído, tanta t-shirt, tanto panfleto, tanta hipocrisia social e religiosa. De um lado e de outro, as vidas que não nascem, as vidas que se estiolam, de um lado ou outro a dor humana deverá merecer-nos o melhor esforço de uma inteligência desabrida, sem dono, disposta a servir o nosso semelhante e não a espoliá-lo da única coisa que muitas vezes lhe dá um sorriso humano: a sua dignidade.
6. Nunca tive uma posição clarividente sobre este assunto. Se por um lado sempre me senti incapaz de julgar o meu semelhante, e mais dos que isso, essa abstrusa discussão sobre o onde começa a vida me pareceu sempre disfarce de quem não conseguia olhá-la, cheirá-la, tocá-la, senti-la onde ela realmente estava, a seu lado, por outro lado a repulsa pela ideia de aborto era tão forte que a senti sempre como uma derrota. Já contei aqui a história de um romance que nunca o foi e que se o fosse, teria sido o meu primeiro blogue, tal era a interactividade com aquilo que me ia acontecendo no dia a dia. Certo dia, levei, de uma aula de português, prolongando-a, uma discussão sobre o aborto. Tinha quatorze anos e creio que nessa altura estava completamente subjugado pelos argumentos de um texto, creio que se chamava carta a um menino que não nasceu e atribuo-o, no tremelejar que é a minha memória, a Oriana Fallaci, jornalista que sempre admirei. Escrevi assim uma vintena de páginas onde ao bom estilo maiêutico que tanto me entusiasmava das minhas peregrinações por Sócrates, eu ia fazendo desenrolar o argumentário de um panfleto anti-aborto que a Igreja Católica tinha feito destribuir por todos os lares. Havia um excesso de razão em todos aqueles argumentos, perfilhados nas folhas de papel de almaço onde eu escrevia. O dom da vida, o momento em que ela se constitui, a forma como se tentava fazer mostrar que a ciência estava do lado da Igreja nesta defesa pela vida. Talvez por isso quando, perto dos vinte anos, eu próprio acabei por me ver metido numa operação de interrupção voluntária da gravidez, a minha consternação foi total. E não fora ter acontecido durante o primeiro amor da minha maioridade, e eu fosse levado a ser completamente absorvido pela tristeza e pela dor que a minha companheira tinha tido, desprezando a minha própria ferida, talvez eu próprio tivesse desabado também.
7. Tenho gravado na memória todos os momentos daquela manhã em que a deitaram na marquesa e a rasgaram, magoaram, feriram, rasparam. A minha angústia, o suor tenso no rosto, a vontade e o desejo de morrer. Nunca tive muitas artes para suicida - excepto para aquele meticular de suicidário escrupuloso com que vou cumprindo os meus dias - mas naquele momento lembro-me, era tão forte em mim a vontade de morrer que uma parte de mim acabou mesmo por desnascer. Ou assim o pensei. É a força daquilo que escolhemos, das nossas recusas - daquilo a que por bravata e ao mesmo tempo, humildade, chamamos as nossas escolhas - que nos faz e assim essa morte que, durante quase vinte anos, em mim trouxe, transformou-se um dia num som, num som forte de um trovão, de um touro, de um cavalo branco. Era apenas um pontinho branco num aparelho ecográfico mas pulsava como um demónio, sai ao pai no seu desejo de amor, pensei.
8. Não posso por isso - a menos que me investisse de toda a hipocrisia do mundo - defender a proibição da interrupção voluntária da gravidez. Tenho ainda gravadas na memória uma coisa: tão frágil é o corpo e a alma de uma mulher a quem arrancaram a semente. É indescritível o silêncio - de dor, ferida, raiva, choro - de uma mulher que teve de, voluntariamente sujeitar-se a que, como se fora um cancro, uma pústula, lhe retirem o embaraço que tem dentro do ventre. E se isto é sempre, em qualquer parte do mundo onde haja uma mulher, em Portugal é ainda de forma redobrada.
9. Exaurir a linguagem da sua mentira e fazê-la carregar a luz de algumas , pretensas banalidades: luta-se com eficácia contra a prática da interrupção voluntária da gravidez quando se implementa em extensão o planeamento familiar, a educação sexual nas escolas e o incentivo ao uso do preservativo; luta-se com eficácia contra a prática da interrupção voluntária da gravidez quando se apoiam as mulheres e as famílias, expurgando e punindo exemplarmente todos os actos de coacção psicológica sobre as mulheres trabalhadoreas que engravidam; luta-se com eficácia contra a prática da interrupção voluntária da gravidez quando se dá sinais claros de que não se esgota na vontade de proibir a interrupção da gravidez a imaginação e a solidariedade social e elas se estendem ao apoio às famílias; luta-se com eficácia contra a prática da interrupção voluntária da gravidez quando esta puder ser realizada pelo serviço público de saúde e em todos os postos de saúde pública puder haver uma informação clara sobre esta operação.
10. Uma coisa aprendi ao longo destes anos todos e nem sempre de forma amena: há que combater por todos os meios ao nosso alcance a hipocrisia e o obscurantismo politico, social e religioso, onde quer que ele se manifeste. É tarefa para mais de mil em todas as horas, minutos e segundos de todas as mil vidas que assim se juntarem. A questão da interrupção voluntária da gravidez não é uma questão da consciência de cada um, é uma questão política, é uma questão de sociedade, e é, acima de tudo, uma questão de mundo. Olha-se para estes rostos e percebe-se que é esse o combate que a Woman on Waves veio fazer e por isso, devemos-lhe a gratidão, contrastante com a pilheria e o ridiculo deste mar encarpado e de pequena vaga que a duzentas milhas da costa, as acolheu.
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2 comentários:
Arrepiante este post! Intenso, acho que já te disse tudo, por outros lados.
Deixo-te o abraço solidário de quem não consegue partilhar o que sentes porque Graças a Deus e só a ele, a vida nunca me forçou a vivê-lo em 1ª mão.
Neste caso, o silêncio fala mais alto.
Escreveste isto faz 3 anos...
Agora estou sendo forçado a vivê-lo... Foi bom ter encontrado seu texto...
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