terça-feira, setembro 14, 2004
Dançar é quase tudo...
sem dedicatória, por recato, para ti
Eram longos e demorados os dias em que tocava a sineta da escola e só eu ficava na cama. O João e o Pedro olhavam-me invejosos, também quero ficar doente, dizia o João, sinto-me mal, acrescentava o Pedro, ele sempre foi mais sonzo. No silêncio da casa apenas eu. Eu e a Alice, do lado de cá do espelho, que à sua vida de limpar, arrumar, cozinhar, cozer e passar de todos os dias acrescentava mais os remédios, a dieta e as temperaturas do menino. A senhora vá descansada, dizia ela para a minha mãe que corria para a sua sala de aula, não havia naquele tempo feiticeiros nem feitiços, a vida, como um daqueles bonecos de corda, girava e girava e girava sem parar. Conte-lhe uma história, Alice, gritava a minha mãe do fundo do corredor, já com um pé fora de casa.
Eu era como tu, ou pelo menos como o que eu pude perceber de ti. Ficava muito crescido, às voltas com o meu tédio, mas não saia dele. Não era de gritos nem choros. Os meus olhos entristeciam o mundo à minha volta, até o vermelhinho, o peixe do aquário ficava sem saber o que dizer, mas apenas isso. E sabia quando chegava a minha hora. Depois da Alice acabar as limpezas e enquanto as batatas e a pescada coziam no lume, eu
chamava-a:
-É agora que me vais contar a minha história?
E era. Mas naquele dia, efeitos de uma doença mais prolongada que as gripes e os resfriados habituais, o saco das histórias tinha-se acabado. Não havia. Nem nos livros, nem nos desenhos e muito menos, na memória.
-Não te lembras mesmo de nenhuma?- perguntei eu. Não me lembro de sensação mais aflitiva do que a de pensar que de ora em diante a fonte das histórias tinha-se secado. A Alice deu conta do meu desespero.
- Podemos inventar uma. -propôs ela.
- Não é a mesma coisa.
Pois não, não é, disse e levantou-se amuada. Topei-a.
- E que história é que vamos inventar? - disse eu esbugalhando os olhos e esperando que da sua parte viesse um truque, um passe de mágica.
- Vamos contar a nossa história.
- Alice?! Não sejas batoteira!
- É! Vamos contar a nossa história mas imaginamos que não estamos aqui. Estamos num Palácio muito grande.
- Com Principes?
- Claro.
- Mas estávamos doentes?
- Tem de ser. Sem isso não há magia. - A esta altura Alice estava já noutra dimensão.- Ouve...- Colocou uma voz solene e uma pose de contadora de histórias - "Era uma vez um menino que vivia num castelo. Um dia ficou cheio de pintas amarelas, lilazes vermelhas, no seu corpo todo. Era sarampo. Ao principio ficou muito triste. Não podia ir brincar. Nem podia saltar, nem aprender novas coisas nem brincar com os outros meninos que não tinham sarampo. O único remédio que havia para tirar aquele sarapintado da sua cara, do seu tronco, das suas pernas, era o único que ele não queria tomar: tempo. Tens de tomar três gotas de tempo de manhã, mais três gotas de tempo à tarde e por fim, antes de deitar, as últimas três gotas de tempo do dia, assim longo. Eu não quero tomar mais tempo, disse o menino que de repente parecia estar a tornar-se num miudo chato e aborrecido. Mas não era, a única coisa chata e aborrecida eram mesmo aquelas pintas saracoteadas que nunca mais se íam embora. Já toda a gente estava a ficar desesperada e tu sabes, quando os adultos começam a ficar desesperados começam a fazer tontarias como puxar do porta-moedas e pensar que tudo e pode comprar. O pai dele era muito rico e mandou por isso uma carroça puxada com cinquenta e cinco cavalos buscar todas as crianças do mundo que tivessem também doentes com sarampo e quando elas voltaram colocou uma tabuleta à porta a dizer hospital e chamou muitos homens e mulheres vestidos de branco. No entanto as pintas, as sarapintas, não passavam. Pelo contrário, parecia que todo o mundo que estava disponível no olhar do menino eram sarapintado o que fazia com que ele não conseguisse deixar de pensar um minuto sequer na sua doença. E como a tristeza nos faz ficar, devagarinho, ainda mais doentes o seu estado de saúde piorou. Um dia passou pelo palácio um homem muito estranho. Trazia uma grande cabeleira multicolor, um nariz abatatado, e duas orelhas enormes, muito grandes mesmo. E fazia também uma mala com muitos bonecos puxados com fios, bonecos que abanavam os pés e dançavam e abanavam os pés e dançavam, dançavam muito, sempre. Dançar era quse tudo o que eles sabiam fazer. Ao passar no Palácio bateu à porta e mandou chamar o dono da casa que já sabemos, era o pai do menino pintado e sarapintado, que, como é fácil de prever, não tinha tempo para estar a atender ninguém. Mas o estranho homem da cabeleira multicolor não se deixou intimidar e lá conseguiu entrar dizendo que sabia de um segredo que fazia a doença do menino sarar num instante. Trouxeram o menino à sua presença e deixaram-nos ficar a sós. A esta altura já o menino não tugia nem mugia, ficava ali a um canto.
- "É tua?" - disse o homem das orelhas de abano, apontando para uma sarapintadela. O menino olhou para ele com cara de espanto. "-É tua?"- insistiu o homem de nariz abatatado.
- O que é que tens a ver com isso?
- Se fosse tua comprava-a, trocava-a por este boneco bailarino.- E tirou da mala um dos bonecos articulados.
- Mas não podes tirá-la daí.
- Não é preciso. - Puxou de uma caneta de feltro e desenhou dois pequenos pés na sarapinta.- E agora vamos dar-lhe um nome...Como é que queres chamá-la?
- Posso chamar-lhe Alice?
O menino destapou a perna e mostrou-lhe uma mão cheia de sarapintadelas.
-Também queres comprar estas?
O homem da cabeleira multicolor abanou a cabeça, disse que não.
- Então se forem minhas, posso dar-lhes um nome também?
- E se me pedires eu posso pintar-lhes dois pézinhos.
- Para se poderem ir embora?
- Ou para dançarem. Dançar é quase tudo que elas sabem fazer.
Nesse dia o tempo passou num instante e não foram nem precisas as famigeradas gotas, três de manhã, três à tarde e três noite. Quando se foi deitar o menino tinha o corpo cheio de sarapintos e pintadelas bailarinas, com nomes bonitos e alegres que vinham logo que ele os chamava. E nos dias seguintes a situação repetiu-se com todos os meninos que estavam no palácio e a coisa foi de tal forma que vieram pessoas de longe, e mesmo hoje em dia, quando as pessoas querem divertir-se, pintam o corpo de pintos e sarapintos que dançam de manhã até à noite porque dançar é quase tudo que um pinto e uma sarapintadela podem fazer."
- Já acabou?
- Deixa-me ir acabar o almoço.
- Alice, amanhã contas outra?
- Com uma condição. Faz o desenho desta história. Senão eu depois esqueço-me e nunca mais me consigo lembrar dela.
E assim, dita e louvada, está esta história contada.
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