quarta-feira, setembro 15, 2004
Pedem tanto a quem ama,
pedem o amor.
Parece-me que é isto que eu quero dizer quando penso na diferença subtil, fina mas não menos exacta, que existe entre a paixão e o estar apaixonado, sendo que se a doença, neste caso do espirito, for um estado, e não uma coisa, e uma ideia é uma coisa, então eu não poderei estar senão em desacordo com essa ideia de que existe aqui a manifestação de um mal d'être. Não estamos, embora pareça, a jogar apenas com palavras. Estar apaixonado o que é? É viver na paixão? É viver uma paixão? Mas como, se a paixão é ela mesma o cristalizar, o suspender desse estado de apaixonamento? Reparemos nesse homem apaixonado. Vamos dar-lhe um nome. Fausto por exemplo. Fausto é um excelente nome para o delírio que nos consome em fogo. Fausto está apaixonado. Desce as escadas quatro a quatro. Sorri entre cada lance de escadas. A sua pele está fresca. Como se varrida por uma daquelas manhãs em que o orvalho estende uma camada deslizante sobre o tojo verde. Respira fundo, saboreando o ar que se lhe deu. Cruza-se com a Dona Antónia, a porteira do prédio.
- Bom dia, Sra Antónia.
A sua voz canta, é canto, hossana em si, alegria. Abre a porta, vem ali a Henriqueta do segundo, por favor, passe, Fausto tem todo o tempo do mundo, porque o tempo só vive fora do enamoramento, este é uma ligação online ao mundo todo inteiro, completo, repleto, pela primeira vez na sua vida de todos os dias Fausto repara naquela pormenor curioso da balaustrada da varanda da Angélica, a rapariga da biblioteca municipal, é mais do que curioso, é cómico, e como numa impressão fotográfica revela a alma da bibliotecária num instante, não deixa de ser interessante esta ideia de que o lugar onde ela se assoma para ver é também o lugar onde a sua textura, o seu corpo, se torna mais visivel, e eu sei, parece que deixei de falar do Fausto, mas não, é justamente dele que falo, continua a subir a rua, ali ao fundo naquele recanto de paisagem funde-se com este...com este assomo de mundo, e ainda dizes que este homem está doente? O mundo ressoa em si, como se o levasse até junto do objecto do seu enamoramento, como se o contasse, como se o narrasse - é isso que eu digo ou tento dizer as meus amigos que foram pela vida dos jornais, da rádio ou da televisão - narrar o mundo que se recebeu é dois momentos, um em que se recebe ardendo um mundo também ele próprio febril, o segundo em que se o devolve, inquietando, alimentando perpetuamente essa ardidura de mundo.
Fausto em busca de Ofélia é um homem apaixonado mas essa condição só se perpetua na condição da não realização da sua paixão. Imaginemos que ele a encontrava. Poderia ser por exemplo a rapariga do laboratório ali defronte. Ás seis da tarde em ponto Fausto estaria à porta armado do mais viçoso ramo de orquideas que a sua alma de poeta conseguiu encontrar. Beija-as, uma a uma, enquanto a não pode beijar a ela. Ela sai e devora-se também nesse deliciamento de uma dedicação tão intima e exclusivamente sua. Pode até suspirar. Há um requebro de alma na voz de uma mulher suspirante que torna ainda mais legítima a paixão. Fausto e Ofélia terminam ali. Fausto e Ofélia terminam ali na paixão que emerge entre os dois. Agora tão banais, tão perto, tão frases misericordiosas, piedosas, ditas em trejeitos de espasmo e suave enrouquecer, e sim, se isto não fosse o objecto, a coisificação do estado do enamoramento, da paixão, eu concordaria contigo, estar apaixonado é uma doença do espirito, um coma da razão. Verifica bem esta subtil diferença entre estes dois Faustos: Um abre as portas ao mundo, inclina-se ou eleva-se sobre o mundo procurando aqui, ali, em todo o lado, o retrato, a imagem, a passagem de Ofélia pelas coisas. É com uma estranha exactitude que corre os dedos pelas teclas do mundo, ele sabe, Ofélia poderá estar obscurecida, escondida, por um semi-tom, uma colcheia errante, ele pode até saber que nunca a encontrará mas terá de a procurar como se fosse possível revê-la em cada partícula de mundo que surge quando tão desvairosamente a procura. E o segundo Fausto? O segundo Fausto atrofia-se num dedilhar insano, por mais que precorra com os seus dedos mais suaves o espirito e o corpo de Ofélia, não é possivel encontrar nela o corpo massacrado, ferido do mundo. Não pode colocar-lhe a mão sobre o dorso e dizer-lhe, eis aqui o deserto, a guerra, a incúria, o desleixo, o desprezo do homem pela sua condição, não pode elevar os seus dedos justos sobre e vulva latejante e dizer-lhe, aqui abençoo em ti o rasto daquela serpente que vi uma vez naquela casa de pó e argila do Crescente Fértil, uma serpente de botas cardadas e risos alarves, fotos instantâneas, tudo, até a morte que provia, apocalipse agora, instantânea, não pode trincar-lhe a maçã, os pequenos bolbos das orelhas, e dizer-lhe, ou apenas pensar, aqui matarei com dedos fortes, robustos e decididos a fome e a sede do mundo, essa terra de ninguém africana onde a cor estiola, mata, ensurdece, não pode nem levar a língua doce e dócil ao estremecer das pernas trémulas de desejo e exclamar a morte daquele assassínio perpetuado em nome de deus, através dos seus guardas e dos seus templos e das suas igrejas e dos seus púlpitos e dos seus simbolos e dos seus ritos e das suas tábuas, não, não pode, todos o sabemos, quase sempre, a soçobrar de Fausto sobre o corpo nú de Ofélia é também o eclodir do egoismo no mundo, da linguagem das espécies, os corpos dos amantes falam a linguagem das espécies, da mesma forma que o homem apaixonado se ilumina num explicitar, num apontar o dedo, num caçar crisálidas, ovos de serpente, num oficiar de mundo, de universo que parecendo que é o seu natural devir é a mais forte, mais terna e mais poderosa rebelião de um homem contra a sua própria natureza, ou contra a besta que habita na sua própria natureza, não pode, pela última vez, não pode dar voz a um mundo do qual se dissidiu. É esse o drama dos amantes, é essa a verdadeira tragédia do amor, é essa a verdadeira dimensão trágica da humanidade que nos habita e simultanemente nos desaloja. Mas não abandonemos ainda Fausto à sua desorte. Observemos como ainda, neste homem doente, soçobrante, em coma da razão, inclinado sobre o seu próprio peito, ressoa, vindo do mais fino do seu existir, aquela voz de homem são, de homem forte enamorado, amancebado e casado com o mundo. Ei-lo que luta, e Ofélia luta com ele, contra o definhar, contra a coisificação do estado. Estão entre a coisa e o coisificar, entre o ser e o ser, ou, para driblarmos a cacofonia, entre o ser e a entidade. Não poderemos dizer que vão vencer, seria folhetinesco, mas podermos desde já, sem sermos parte desse estiolamento, dizermos que não vão conseguir?
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5 comentários:
Os teus textos são enormes e eu estou atolhada e não consegui ler os lá de baixo.
Quase que tropecei eu, nesse estado de enamoramento feliz ou nem tanto de mim, feita Fausta sorridente e leve ou Fausta depende de ansiólitico de modo a conseguir respirar algum ar, na hora de descansar.
Viver a paixão é diferente de estar apaixonada!
Partilhas
Muito para meditar. Vou ter que reler.
Não, acho que não podemos :-)
Mas vou reler, mais uma vez...
Lúcido e lindo. A beleza está na procura, na luta. S.
Grande JPN, obrigado, é um prazer ler estes textos. FM
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