quarta-feira, setembro 01, 2004

Declaração de Voto

Perguntaram-me hoje ao almoço porque é que eu pareço ter tanta raiva na candidatura de Manuel Alegre? Talvez alguém se lembre que cheguei aqui a escrever que votarei no José Sócrates e que depois entregarei o cartão de militante do PS? Devo dizer que tenho uma forte admiração por Manuel Alegre. Desde a minha adolescência que os seus poemas ditos e lidos fazem parte do meu imaginário poético. Agora tenho um problema. Não consigo imaginá-lo secretário geral do Partido Socialista nem putativo candidato a primeiro-ministro. Afinal nada de mal, segundo me disseram, porque nem eles próprios, os seus apoiantes, assim o vêem. Diz-me mesmo o meu interlocutor, jornalista sábio, que o voto útil é uma realidade, que ele também há alguns anos tinha votado contra Freitas do Amaral e não em Mário Soares. É natural, respondo agora eu. O espectro da oferta política na sua relação com a procura, é também dominado pelo fenómeno da escassez. O chamado voto útil, o do mal em menos, é uma das alternativas que se coloca a um cidadão que não vendo nenhuma proposta política ideal, não pode também depositar na urna o seu voto ideal. Resta-nos a consolação de que este voto útil se vai aplicar numa proposta que é o melhor que quem a apresenta é capaz de fazer por todos nós. A isso chama-se política, pode ser melhor ou pior, mas é política configurada e compatível com um existir democrático. O que já não me parece natural - e os últimos meses da nossa vida política provaram-no amargamente - é que tanta gente respeitável e respeitada, com provas dadas no exercício da política, se preste a esse exercício indecoroso e profundamente sampaísta, no que de mais indigno e diletante esse conceito tem, de subscrecer uma proposta útil , que independentemente da velocidade e do brilhantismo com que foi redigida, não tem uma correspondência entre aquilo que é proposto e aquilo que se espera que as pessoas votem. É preciso dizê-lo, uma proposta útil pede um voto inútil, ou, no mínimo, um voto que assuma a sua possivel inutilidade. Já andei detrás para a frente nesta questão, o respeito que tenho pelo poeta e por muitos que o apoiam assim me aconselhou, estava até disponível para rever um texto algo violento que coloquei aqui sobre este assunto, mas sempre que falo com mais um apoiante de Alegre encontro redobrada a mesma justificação: "é contra o moderno", "a malta que lá está é muito capaz", "vão encontrar outro melhor para os cargos que agora, ficticiamente, alegremente propôem". Talvez esteja a perder a razão, admito, mas não consigo encontrar agora nada de mais íniquo para a qualidade da nossa perseverança num viver democrático, do que este profundo desprezo pela vontade popular, do que nesta absoluta e cega confiança numa oligarquia de notáveis e de sábios. A pergunta é muito simples e não admite fugas: em quem é que os apoiantes da candidatura de Manuel Alegre vão votar? Naquela declaração de voto imaginária que cada um de nós faz quando, em manhã eleitoral, caminha em passo de passeio para cumprir o seu dever cívico, o que é que os assumidos votantes na candidatura de Manuel Alegre vão dizer? O Sampaísmo no seu pior.

Sem comentários: