quarta-feira, setembro 01, 2004


Há, em lugar algum. Estou no fim da minha vida e assalta-me uma vontade de ser sincero como nunca fui. Como nunca consegui ser. Não quero agora desviar-me um milimetro deste sentimento de franqueza. De despojamento. De nudez. Que almejo mais do que tudo. Há tantas razões para a insinceridade. Não vou pensar nisso. Queria ser sincero como nunca fui. Como nunca consegui ser. Ser comovidamente fusão de mim com o momento em que vivo. Queria por exemplo ter sido sincero com as mulheres que amei. No mercado onde as vidas se trocam, se enroscam, se embaraçam, daria muitos tempos do meu já tão escasso tempo para ver a face das mulheres que amei entreabrirem-se de um sorriso de alegria ou rasgarem-se por uma água pura,delicada e lacrimosa, na partilha da expressão mais volúvel da minha sinceridade. Daria tudo para não ter sido sincero apenas com as mulheres que desamei. Com os lugares de que parti. Haveria de ter gostado de ter experimentado o sentimento de gratuitidade que há no rasganço de uma alma. Não me peçam razões para a inverdade. Estou no fim da minha vida e assoma-se de mim um desejo de frutos, de flores, de cores claras e de tonalidades quentes. Não irei agora falar, nem sequer debruçar-me sobre tudo aquilo que não disse, que não fui capaz de proferir. Aprendi a despedir-me de tudo o que olho, de tudo o que vejo, de tudo o que sinto, de tudo o que amo. Aperto as pálpebras uma contra a outra e no rasto de luz que entra pelas frestas dos cabelos dos meus olhos calculo a abertura necessária para deixar gravadas profundamente as imagens de adeus que me assolam. Já não estarei cá quando tudo isto for verdade outravez, não já em mim mas pela segunda vez, em vós. Em tudo isso ficará a ideia de que não fui capaz de uma clarividência, de um despojamento final. Espero que venha um anjo buscar-me à estação. Um anjo com o sexo rubio, intemporalmente rubio e feminino. Não me interessa agora os cabelos, os olhos, a boca, o volume ou a própria pele. Debruçar-me-ei sobre o seu sexo fêmea, canídeo, diria, o amor.

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