terça-feira, setembro 07, 2004

Fim de Exaltação

Dá-me por vezes uma febre. Uma irrequietude. Um estado d'alma. Quase nunca estou. Vou passando pelos lugares. Chamo a isso primavera e verão. Apetece-me, quase esquizofrenicamente, ser um outro. Digo quase, porque nunca percebi bem a medida e a (des)porporção. Nem para a loucura nem para o excesso. [Tive um amigo que ao fim de um percurso de excesso de consumir as suas próprias membranas de batráquio, começou um percurso anónimo, para se libertar da copofonia. Eu sofria até mais não ao vê-lo bater com a mão no peito arrenegando-se numa ladainha de actos de contrição meio inaudíveis e imperceptíveis por ter bebido meia cerveja, enquanto eu, não copofónico, já ía na minha terceira, estupidamente gelada.] Dá-me por vezes uma febre. Uma irrequietude. Um estado d'alma. Quase nunca estou. Vou passando pelos lugares. Chamo a isso primavera e verão. Hoje acordei de uma forma diferente do que nos outros dias. Abri os olhos como sempre mas a partir daí começou um pequeno e subtil jogo de diferenças. Outro que não eu não lhes teria dado nem fé nem voz. Mas eu pressenti-as. Sentei-as no meu colo e ouvi-as o mais atenta e apaixonadamente que ao despertar sou capaz de fazer. Depois não peguei numa tshirt, daquelas onde me invento com menos dez anos em cima dos costados. Peguei na camisa azul que trouxe da Tailândia ao preço da uva mijona, a camisa do cavalinho, como diz o Peter Pan - ontem fiquei tão triste ao ver que a sua farda nova, que lhe fica tão bem tem também uma gravata. Havia necessidade? - e em vez de a passar no corpo, como tantas vezes faço, liguei o ferro, coloquei a tábua ao pé da janela da marquise virada para a empena do Parque Eduardo VIII e começei logo ali a planear o mais incrível caldo verde, finalmente sem nenhum daqueles penduricalhos que lá meto para dentro, finalmente com a medida certa de batata, um puré cremoso e meio espesso, e mesmo assim ainda corrijo, o mais incrivel não, qualquer dia vou ao mercado peço para cortarem a couve em fios longos, e coloco-os até em demasia, gosto de os sentir longos, o caldo assim é o prenúncio de verde que a minha vida feliz sempre foi, sempre será. Meio distraidamente ponho o cd a tocar, Tito Paris tinha lá ficado a cantar toda a noite, desculpa Tito, adormeci, e tu ali às voltas, às voltas, e dou-me conta pela primeira vez, e é exactamente depois de sair dele que pela primeira vez dele me dou conta, deste ridiculo de existir do último mês, este Agosto na cidade, em que com uma casa enorme apenas precisei de um ecrân para me julgar contente e feliz. Talvez sejam estas as casas que habitaremos no nosso futuro próximo. [Depois levantei-me e peguei numa caixa, uma caixa de sapatos. Coloquei lá os adereços deste mundo de avatares. Abri o computador. Com um sorriso malandro de quem sabe que não voltará antes da próxima primavera coloquei no msn, ausente. O dispositivo tecnológico do on/off permite arrefecer o mundo num segundo, num instante. Saio para a rua, compro o Público de todos os dias. Lá em cima, num daqueles cabeçalhos simpáticos anunciam um rei de um jazz no hot club. Sorrio, a esplanada do hot. Sorrio. Há sempre uma maneira de entrelaçarmos os dedos e sairmos airosamente deste, de um qualquer verão.] Dá-me por vezes uma febre. Uma irrequietude. Um estado d'alma. Quase nunca estou. Vou passando pelos lugares. Chamo a isso primavera e verão. Digo futuro próximo e a primeira notícia que leio é a da receita do elixir da eterna resistência de Emidio Guerreiro: o futuro, os olhos na linha do horizonte carregados de futuro. Como naquela história que a Elena anteontem contou daqueles dois irmãos separados pela guerra que continuaram sempre a acreditar que estariam vivos, que se voltariam a ver, que se voltariam a entrecruzar num futuro mais ao menos próximo, o futuro tem duas horas, duas horas, não tem mais, sorrio, e tu ainda dizes que o que escrevemos aqui não são visceras, intestinos, âmagos, tu ainda o dizes quando é tão claro, tão transparente que aqui o que escrevemos são isso, futuros.

2 comentários:

inconformada disse...

Mas porque é que é tão difícil comentar-te ? :-)
Beijo

PARTILHAS disse...

Inconformada...

O comentário que eu pensei antes de ler o teu;
"Não sei porque é que permites comentários a todos os teus posts, a sua maioria são incomentáveis!"