terça-feira, setembro 07, 2004

Interrupção Voluntária da Paixão

Onde começa a vida de uma paixão? Onde é possível dizer cientificamente que a partir dali a interrupção voluntária de uma paixão é crime passional, punivel por lei? O não do dia seguinte pode por exemplo ser encarado como um autêntico acto abortivo de um acto de enamoramento? Ou ainda não existirá nessa paixão latejante mais do que a sua promessa? Por vezes ocorre-nos isso. Tamanha ternura, tamanho afago, tamanho silêncio que o acto de o reprimir, de o censurar, de o calar, de o contornar ou simplesmente, de o negar, pode ser encarado como a morte de uma entidade viva, a paixão. Não há mundo nenhum que se destine a durar um pouco mais do que a nossa passagem por ele que não se detenha na pergunta, é possível viver sem estar enamorado, apaixonado ? E sendo assim, estiolar assim uma paixão porque sim ou porque não, porque se tem medo ou porque se o perdeu, porque em calhando ou não calhando, a partir de quando será acto punível pela lei? Falamos sempre do embrião que aí está mas nunca do amor que o gerou e esse é também vida, vida assim, antes de. Ora esse amor gerador e gerenciador também é tantas e tantas vezes amputado do seu desejo de seiva, de vida, de gerânios, de manjericos, de ais jesuses, de meus amores, amores perfeitos, de heroísmos, de saltos mortais e piruetas encorpadas numa cama que por vezes nem enxerga é. Que nem enxerga é. Muitos de nós, talvez os melhores de nós, nasceram de actos de amor tresloucados que nos contaminaram a existência com uma humanidade desabrida, feroz, e a despeito desta grandeza e épico desabrochar a verdade é que muitos deles, quiçá os mais valorosos e destemidos, foram concebidos num espaço espúreo, miserável, onde só cabia a ousadia e o destempero de uma cópula. Mas para isso é necessário saber onde começa a paixão, o amor, e essa é a questão que nunca conseguiremos responder satisfatóriamente. Cada caso é um caso e amamos todos de maneira diferente. Como te estava a dizer hoje, e tu ouviste, e chamo-te agora ao diálogo para que ninguém mais pense que isto é conversa de defunto, de defunto amor ou paixão, as coisas que acontecem não sendo iguais às quais escrevemos são rigorosamente as mesmas, no sentido em que mesmo é alguma coisa, na minha vida o apaixonar e o enamorar tem quase sempre um dramatismo a modular-lhes a condição, porque corro no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, enquanto que muito naturalmente as pessoas dão tempo ao tempo das coisas se manifestarem, se alicerçarem, era assim que o bondoso padre tomás da minha infância pregava as virtudes da família e da solidez dos bons lares, alicerçados num amor profundo - descobrimos mais tarde, adormecido - mas enquanto as pessoas muito naturalmente desenvolvem a paixão e vão longe no amor, eu tenho por desgraça, sina ou condição, começar com o coração, a alma ou a traquitana das emoções e dos sentidos ao rubro e depois, lenta e imperceptívelmente, tal como com os ponteiro dos minutos, assim também um dia já estou no devir da paixão, do enamoramento, do arrepio dos beijos e do afago dos gestos, é um de repente que me chega e então, já estou lá, precoce, rápido, no desmanchar da parra, do colher da uva, do vindimar e ceifar desta vida que me emprestaram, vai, vem, vai, vem.

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