terça-feira, setembro 28, 2004

Palavra Desencanto

É uma palavra por ora impronunciável. Ou no impronunciável que ela é descubro uma força residente. Tenho alguma compaixão com os vivos, confesso. Diria mesmo, complacência. O primeiro ser com quem sou confrangedoramente complacente sou eu mesmo. Não consigo tirar-me essa bolsa de ar que é alimentar a esperança de que amanhã vou conseguir finalmente justificar a minha persistência no existir. Esperança renovada e reiteradamente vã, aceito. Há uma vida humilde por trazer à luz e mesmo que repitas a exaustão dos teus lugares, dos teus memes (andava a resistir-lhe, confesso) essa intenção de a resgatar justifica que abras os olhos mais uma vez, dia após dia. Não menos certo: o não desencanto é uma composição química em evolução, dirias, em regressão. Já não é apenas, nem sobretudo, nem mesmo algum lirismo, seja ele do género religioso, politico ou romântico. O não desencanto é um reconhecimento da dádiva que há no tempo que nos esculpe e apura e nos enobrece o carácter. Se durante estes anos todos escrevi, entre o privilégio, a graça, a obsessão e a paixão, escrevi, e se finalmente encontrei um depósito da palavras suficientemente solícito para não me negar nenhum excesso, é mister que utilize essa capacidade para resgatar ao território do não, da impossibilidade, aqueles que sangram sem nunca saberem como se avermelha o sangue quando escorre. Como ontem, tinha ido jantar sózinho, como quase sempre. Numa cervejaria onde nunca vou, porque não gosto. Não gosto do cheiro dos fritos, da disciplicência das mãos a lamberem-se de múltiplos e repugnantes sabores, dos balcões de alumínio molhados com umas gotas de vinho ou de imperial, não gosto dos olhares sebentos de gente humilde mas não suficientemente humilde para perceber que há vida para lá dos seus arrotos, cuspidelas, peidos e outras alarvidades. Da sua arrogância. A arrogância no mundo cresce a montante da luta de classes. Mas ontem estava numa daquelas noites suicidárias em que quanto mais deprimente e compungido for o ar que respiro mais exulto de um crescente contentamento. E já ia a meio do meu creme de legumes que elas as duas entraram. A de costas. Nunca saberei se eram vendedoras de cremes avalon, empregadas de restaurante ou até tangíveis proprietárias do seu corpo naqueles minimercados de emoções a retalho que são os bataclans do interior, neste caso de Braga. Que tinham acabado de chegar desta cidade é-me mais ao menos fiável. Que uma tinha acabado de chegar à profissão e que a outra lhe apadrinhava a entrada, também. Que eram as duas humildes, indiscutivelmente. De humildades diferentes. Uma, encantada pela vida que ela tem, com jeep, com casa, uma casa espectacular entendes, com demasiadas certezas na voz, felizmente aquela que estava virada de costas para mim. Gostava de ter uma vida assim, dizia, e quando o dizia, o tal principio da eclarité, de uma vida luminosa, apagava-lhe a arrogância no timbre. As costas eram firmes, ligeiramente espadaúdas, convictas. O cabelo apanhado, em carrapito, à minhota. Estava irritada com uma colega do trabalho. A gajinha. Que dizia que tinha trabalhado já num banco, que tinha frequência universitária. Podes ter sido tudo o que foste mas agora és quem és, respondeu-lhe ela com aquela crueldade própria da vida agreste. E o gajo? Será que o gajo que tem uma filha já imaginou que a filha podia estar nas mãos de um porco como ele? Continua a falar do eu que é, expande-se em exercícios de personalidade. Não lhe teria dado alguma importância se não fosse a outra. A de frente. Trazia também o cabelo apanhado. Um colete de linho sobre a pele. O ar de quem sua e cheira quando geme. Um olhar doce, meigo. Alegre. Bebia uma imperial e a seguir uma outra, no ritmo da conversa. Iam sair, percebia-se. Estavam a comer umas tapas antes. Tapas?! Amendoins, alcagoitas. Olhava para mim, procurando plateia. Dei-a. Dar-lhe-ía um pouco mais, se pudesse. Se pudesse fazer um clic na vida de todas as princesas sem reino à vista. Estava revoltada. Emocionou-se quando repetiu o episódio da recriminação que o chefe lhe teria feito por ter metido baixa. Só por isso descobri que era improvável aquela ideia do bataclã. Parecia-me mais, de um restaurante. E já tinha ganho bem, cem contos limpos. É mais um sinal deste Portugal bestial. Tinha há alguns anos estado na Suiça, onde ganhava bem, tinha tudo, tudo não, eu não preciso de quase nada. Quero um afago, uma meiguice, um poder conversar, encostar o pescoço, não sou de muitas precisões, há muito que isso me basta. É claro que ela disse isso para a amiga mas pareceu-me que ela me olhava. E dito assim, apeteceu-me responder que sim. O episódio da recriminação era canalha quanto baste. Tinha estado de parte de doente. E o gajo ainda por cima atirou-se-me a mim. Parece que não sabe que para uma pessoa que vive com todo o dinhero contado estar doente e não trabalhar é um suplício. A caixa só paga quando eu já me esqueci que tive doente. Juro-te, se a minha tia não tivesse paraplégica em casa e eu tivesse que ser o sustento daquela casa vinha-me embora. E quando menos esperava, olhou-me e disse, um dia ainda hei-de ser feliz.

5 comentários:

Anónimo disse...

"Olhava para mim, procurando plateia".

trutasalmonada disse...

Por minutos senti-me a vaguear num conto ...

trutasalmonada disse...

conto onde ... ver blog tomografia das emoções onde completo o comentário. Obrigada

Anónimo disse...

Venho cá diariamente, mas nem sempre me consigo deter a ler-te. Gosto de te ler de rajada e sem interrupções, assim... já no silêncio!
Imagino a cena que descreves, entre vários lugares e rostos que conheço e monto assim o meu cenário, com os teus personagens, nos meus rostos.

PARTILHAS disse...

Ai desculpa, esta anónima era eu... foi sem querer...