sexta-feira, setembro 24, 2004
Quando dizes fome, estás a falar de quê?
Um pouco de luta de classes agora
Escreverei fim mas nunca o meu próprio fim, deixei aqui no outro dia. Há uma desadequação entre o que escrevo e a vida, e o real. Sei, sabemo-lo, não se trata disso. Agora não se trata desse queixume. Trata-se de deter, de fazer parar a escrita para narrar. Irrita-me agora sobremodo a minha condição pequena burguesa agarrada ao diluir dos males do espirito, quando nada disso vale. E vale, é a grande contradição - a grande contradição, a grande tragédia, bah, porque é que as coisas não podem ser pequenas- do nosso mundo, eu pequeno burguês de origem e condição não reconhecendo nenhuma importância decisiva às minhas dores de être, ocupo espaço e tenho até o mesmo direito a existir do que aquele homem que no outro dia morreu de fome em Portugal. Morreu em Portugal de fome e eu nem lhe sei o nome nem lhe mandei uma flor nem tentei sair do meu nojo, do meu medo de me ter tornado numa monstruosa caricatura de mim mesmo. Estou no Lábios de Mosto, o meu restaurante dos últimos dias, saboreio comida com paladar e gosto, a gosto. Da janela olho um homem. Parece que fala sózinho. Vejo-o ir. Pergunto-me quem é ele. Passado algum tempo ele volta, como que respondendo à minha pergunta. Traz um pero na mão, mastiga-o com apetite. Abre o caixote do lixo do restaurante. Vejo-o melhor, iluminado pela minha minorca condição. Tem um rosto sereno. Limpo. Asseado. Apenas um excesso de roupa denota alguma descontextualização com o resto das pessoas. Penso em levar-lhe um pouco de pão com manteiga, penso em convidá-lo a sentar à minha mesa. A minha mãe, a quem chamo beata na minha superioridade de merda, quando alguém batia à nossa porta de domingo sentava-o à nossa mesa. Habituei-me a que os meus almoços de domingo fossem muitas vezes partilhados com aqueles que tocavam à campainha. Vinte anos depois aqui estou eu, pensando muito e tanto e portanto, empanturrado nos meus pensamentos de trampa, de trampa seca, de bosta de boi, e nada fiz. Um excesso de roupa. Lembro-me agora do Hadji. Fiquei de resgatar a sua história e nunca mais o fiz. Entretido nos meus males au coeur não o fiz. Não mereço o ar que respiro.
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2 comentários:
A desadequação por vezes é necessária para que melhor se possa fotografar e entender o "objecto" pretendido
a todos os que aqui passam, o Respirar foi acometido de doença súbita. Não sei se privada, se epidemia. Não consigo aceder ao meu blogue. Vou parar a outro. É do blogger, tenho a certeza. Não sei é quais as consequências, se arrepio passageiro, se mal funesto duradouro. Não há 112 aqui na blogosfera?
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